terça-feira, 10 de junho de 2008

ASPIRINA

- Pegue a aspirina para mim!

            Ela guarda os remédios dentro de uma caixa velha de sapatos, que deixa em cima da geladeira. Talvez as gavetas estejam entupidas de potes Tupperwares queimados, oleosos e sem tampas. Além de aspirina, sal de frutas, remédio para o estômago, calmante, antialérgico e Band-Aid. Suas dores são tão fortes durante a noite, que é incapaz de se levantar da cama. Espera-me chegar.

Prefiro a solidão. Entrar em casa e esquecer a sandália ao lado do sofá junto com a bandeja que usei para jantar macarrão instantâneo em frente à televisão. Dormir em meio a roupas sujas jogadas em cima da cama e acordar seis horas depois com a música gospel que toca no rádio-relógio. Em vez disso, é a voz rouca dela que me desperta, pedindo três reais para comprar o pão.

- Pegue a aspirina para mim!

Procuro em vão por talheres limpos e guardanapos de papel. Esquento o jantar, que ela deixou pronto para mim em cima do fogão: arroz, cenoura refogada e filé de frango. Penso em reclamar a falta de feijão. Seu arroz continua empapado, a cenoura, crua e o filé, malpassado. Mas o cheiro é bom.

Ignoro a caixa de sapatos. Vou até o quarto dela e, sem acender a luz, dou-lhe o copo de água e uma pedrinha branca que decora o aquário do peixe.

Antes que se entregue aos sonhos, suas dores cessam.

 

sábado, 7 de junho de 2008

LÍNGUA

(texto lido no terceiro sarau da AIC em 4 de junho)

A assadeira esquenta. Picados, na tábua de carne, a cebola, o alho e meu coração. Escorregam para o inox excitado e chiam lambuzando-se no azeite. Você sempre prefere o azeite. Eu não, ele espirra em meu rosto. É contra o que faço? Inalo o vapor dos temperos. Está na hora. A geladeira impede que a carne apodreça. Escolho.
Acrescento um ramo de alecrim. Os murros começam quando fecho a porta do forno. Enxugando as mãos no avental recém-lavado, abro a porta da frente. Perguntam-me sobre você, Adelaide.
- Sumiu há um mês. Já disse.
São bem menos simpáticos, os dois policiais, desta vez, e como já conhecem a casa, saem à sua procura pelos cômodos. Você sabe, querida, que tenho manias. Não gosto de pessoas bagunçando as minhas gavetas.
Aguardo encostado à geladeira e acendo um cigarro. O maior deles quer me filar um. Entrego-lhe dois, acompanhados do sorriso, que você muito bem conhece. Minhas rugas os relembram como é doce um velho.
- Que cheiro bom...
Choro. Você diz a mesma coisa sempre que o alecrim começa a perfumar a cozinha.
Acham-me gentil quando ofereço um pedaço do assado. Anoitece. Como não matar a fome dos coitados, que nem almoçaram? Culpa de um chefe carrasco que só pensa nos olhos do Secretário de Segurança.
Com as bocas meladas, vão embora satisfeitos. Desculpam-se pelo incômodo.
Ao fechar a porta, vou, vaidoso, comprovar o sucesso da minha receita.
Sua língua continua deliciosa, Adelaide, meu bem.

terça-feira, 27 de maio de 2008

NOVE DA MANHÃ


O trânsito de São Paulo. O ar empedrado de São Paulo. As buzinas de São Paulo que insistem no coro: Bi Bi, Fom Fom, Gostosa. E a impaciência que assinaria as minhas ofensas aos ouvidos do meu chefe e o meu pedido de demissão.
O carro da polícia de São Paulo posando valente em duas das três faixas de uma avenida, porque, talvez, algum ladrão, necessitado, pai de família, cheirador, desesperado, inexperiente, tenha sido surpreendido.
A insignificância de um semáforo verde em São Paulo. A chuva caindo nas poças de São Paulo. Os velhos e suas bengalas atravessando as faixas de pedestres de São Paulo. E o início da minha reunião com quarenta e cinco minutos de atraso do horário programado. Sem café, porque é mais importante ensaiar uma desculpa.
Uma hora depois, cinco ligações do escritório depois, três blocos de músicas depois - uma delas repetida quatro vezes - dois blocos de notícias depois e dez metros depois, percebo mais que o carro da polícia: um resgate, curiosos e verbos soltos no ar, como horas atrás, um corpo.
O corpo de um cretino atrapalha o trânsito de São Paulo.
(texto inspirado em “Construção” de Chico Buarque)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

CONTAMINA-ME O SONHO DE MINHA MÃE


Enfim conheci a letra B que, prometeu a casca de laranja rompida depois de nove giros velozes, vai voltar para casa com um conto doce nas mãos só para me agradar, dizendo que eu não preciso emagrecer, porque sou bonita assim, com cinco quilinhos a mais.

Que tome nota disso tudo a letra G, que encasquetava comigo! Não a culpo. Como não associar destino ao desenho de veias no peito do pé esquerdo?

quinta-feira, 8 de maio de 2008

SEM SEXO




(texto lido no sarau da AIC em 07 de maio)

Mal a porta bate, pode sentir o cheiro de rosas no quarto e o toque bruto de Inocêncio nas suas coxas. Gosta dos calos das mãos masculinas e o prazer que deixam marcado na pele. Tem o hábito de contar na última folha do talão de cheques os dias em que está sem ver um homem nu: duzentos e cinqüenta e oito, graças ao desastre de carro que matou o marido. Tem quatro horas para relembrar os seus melhores ângulos e exibi-los ao espelho do teto e a Inocêncio. Separou na noite anterior o melhor sutiã, meia-taça, e a menor calcinha.

Inocêncio bebe o vinho tinto seco indicado no menu. Ela comemora a temperatura ambiente: vinte graus. Ideal para simular excitação. Esperar que o álcool transforme o colega de viatura em galã é perder tempo, pois já sente a intimidade latejar. Romântica, retardaria o momento de despir a lingerie, mas a precipitação desabotoa o meia-taça, que cai no chão em câmera lenta e ela se arrepia cheia de expectativas. Revelam-se aos olhos do policial seios grandes. Inocêncio, que nunca esteve diante de tal abundância e tanta iniciativa, recua (inseguro?). Ela deixa a calcinha escorrer pelas pernas grossas até encontrar o carpete, encardido de outros prazeres. Inocêncio reprime a manisfestação precoce do seu desejo. Ela se atira aos lençóis de cetim salmão e o traz consigo, ainda vestido. Com a confiança recuperada, ele aborta as preliminares, arranca o uniforme e se concentra na (jura!) satisfação carnal da amante.

Deveria pelar o aproximar de seus corpos. Deveria haver suor tatuando nucas e abdômens. Mal dançam os quadris nas ondas do colchão de água. Mal encostam-se as bocas urgentes de beijos agressivos. Ele grita, enquanto o tédio dela olha para cima, pensando em marcar o reflexo dos cabelos para sábado.

- O ar condicionado está ligado?

Inocêncio, antes empenhado em gemidos primatas, interrompe as fracas reboladas das nádegas peludas. Ao perceber que o homem poderia desabar em choro, frustrações e posteriores broxadas, ela unha a cintura dele e refaz:

- Não pare agora!

O entusiasmo dá continuidade aos movimentos monótonos, desta vez, mais mecânicos, de Inocêncio. E ela pensa:

- Só falta querer dividir a conta!


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