quarta-feira, 23 de abril de 2008

MICROCONTO 3 - TRÊS

Ele insiste.

Ela resiste.

 

LÁPIS

Desde que ouviu o desabafo telefônico da mãe à tia Fátima, Dênis encasquetou com os lápis. Era capaz de abdicar do Yakult e da esfiha de carne do seu Brito no recreio. Em troca, pedia à avó que metesse na lancheira três bisnaguinhas com Ioio Cream, embrulhadas em papel alumínio e na garrafinha térmica, suco de maçã. Guardava as economias dentro do seu porquinho, comprado no farol da avenida Sumaré. Cabulava as aulas às sextas-feiras em um pinote à papelaria. Torrava os reais em lápis coloridos e macios. Separava-os de acordo com os locais. Na sala deixava os azuis; em seu criado-mudo, os brancos; no jardim, os importados do Japão; guardava três de borracha na mochila e a coleção da Faber Castell 36 cores escondia na gaveta de calcinhas da mãe. Em um domingo de manhã, a desgraça sussurrada ao telefone aconteceu. No banheiro, a mãe se debatia em tremores no azulejo. Ao abrir o armário das toalhas, o terror soprou a espinha do garoto. Encontrou um único lápis, o de maquiagem, apontado, quase no fim. Um lápis pequeno demais para caber de uma ponta da boca da mãe a outra. Seu plano falhara. A mãe mastigaria a própria língua e seus lápis de cor, escolhidos com tanto cuidado, não a impediriam de um canibalismo inconsciente. Derrotado pela culpa, Dênis se sentou na privada e chorou, enquanto sua mãe babava por socorro.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

ELEVADO COSTA E SILVA

Era manhã quando o cheiro do Elevado Costa e Silva escorreu pelo corpo de Nice com água, espuma e células mortas. A Rua Rosa e Silva desceu pelo encanamento da casa branca descascada. O Puteiro do Alves, camuflado com a placa amarela Sinuca Chuchu em sua fachada, conheceu os ratos da zona norte que, assim como os moradores dizem “É nóis!”, mas na língua ratatouille. O Bar do Nogueira e o próprio Nogueira escorregaram ébrios na gelatina marrom do esgoto de Santa Terezinha. A Padaria Palmeira passeou pelo mundo que há embaixo do Salesiano e do Mazzarello e ecoou: pizza napolitana! pizza napolitana... litana... tana... tana...

Era manhã quando o travesseiro exalou a saliva ocre. O azedo da fronha, nem as lavagens à mão de Cirlei às quintas-feiras removeriam. Talvez só o conseguiria o sol da semana seguinte. O sol que se comprime ao passar pela janela do quarto de Nice, das oito e vinte e três da manhã às duas e quarenta e cinco da tarde, e esquenta o edredon virgem bordado à mão pela tia-avó. Um espaço em que o Elevado jamais transitaria não fossem os goles abundantes e necessários de um dia anterior.

quinta-feira, 27 de março de 2008

VODU

Agulho o peito de pano

É pouco!

Espeto sua cabeça de espuma

Arranco a mordidas braços e pernas

Você não arde

Ela não transborda

nem sangra


O flagra se repete

Você, a mesma

Cravo em seu peito um espeto de carne

Cai o meu boneco de pano

Escorre a sua última indiferença

quarta-feira, 26 de março de 2008

PELA PORTA

Quem é essa mulher e por que ela não pára de olhar para a porta? Eu não vou aparecer para o seu contentamento. Odeio agradar. O estalar dos seus dedos me irrita a ponto de eu manchar o seu vestido branco com o meu vinho tinto. Recuso-me a pagar a lavanderia! Posso, no entanto, lamber os respingos em seu rosto macio com a minha língua áspera. Não quero um beijo. Quero lhe dar um espelho e a foto dos meus três filhos. Não quero um amor. Se ela concordar, cumpre oito horas diárias. Pago o seu bilhete Único. E tem a minha camiseta listrada de vermelho e azul-marinho. Ela sabe lavar? Parece-me do tipo que não reclama das mãos secas de sabão. Pensando bem, é bonita, mas olha para a porta insuportavelmente. Sua devoção desperta a minha sede. Que pernas, puta que pariu! Ela quer? Eu quero. Hoje. Por enquanto. O dia seguinte, resolvo a minha maneira: a ausência canalha no café da manhã, enquanto ela olha para a porta e me espera voltar.

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