quinta-feira, 27 de março de 2008

VODU

Agulho o peito de pano

É pouco!

Espeto sua cabeça de espuma

Arranco a mordidas braços e pernas

Você não arde

Ela não transborda

nem sangra


O flagra se repete

Você, a mesma

Cravo em seu peito um espeto de carne

Cai o meu boneco de pano

Escorre a sua última indiferença

quarta-feira, 26 de março de 2008

PELA PORTA

Quem é essa mulher e por que ela não pára de olhar para a porta? Eu não vou aparecer para o seu contentamento. Odeio agradar. O estalar dos seus dedos me irrita a ponto de eu manchar o seu vestido branco com o meu vinho tinto. Recuso-me a pagar a lavanderia! Posso, no entanto, lamber os respingos em seu rosto macio com a minha língua áspera. Não quero um beijo. Quero lhe dar um espelho e a foto dos meus três filhos. Não quero um amor. Se ela concordar, cumpre oito horas diárias. Pago o seu bilhete Único. E tem a minha camiseta listrada de vermelho e azul-marinho. Ela sabe lavar? Parece-me do tipo que não reclama das mãos secas de sabão. Pensando bem, é bonita, mas olha para a porta insuportavelmente. Sua devoção desperta a minha sede. Que pernas, puta que pariu! Ela quer? Eu quero. Hoje. Por enquanto. O dia seguinte, resolvo a minha maneira: a ausência canalha no café da manhã, enquanto ela olha para a porta e me espera voltar.

sexta-feira, 14 de março de 2008

LIMÃO-BANANA

Vocês já viram um limão com vontade própria? Eu não, mas soube de um. Aconteceu na semana passada com a minha vizinha de seis anos. Abri a porta e dei de cara com a Yasmim chorando e foi difícil me controlar para não rir daquela coisinha de bochechas gordas, borrando toda a sua maquiagem de palhaço. Era dia do circo e as professoras fizeram essa surpresa para a criançada. “Que aconteceu, Yasmim?”. Entre soluços e fungadas ela me contou que um limão não sabia se queria servir de suco para ela. No Pré-III eu conversava com a pia do banheiro e via sombras andando pelas paredes de casa, então achei que fosse coisa da idade e me ofereci para acertar as contas com o limão. Mas não éramos tão parecidas assim, já que ela agradeceu, mas recusou a minha ajuda. Disse que era um assunto que deveria resolver sozinha com o limão. Ver uma criança auto-suficiente me dá raiva. Não dela, mas de mim, que sempre fui uma tonta incapaz de solucionar os problemas da infância sozinha! Uma bronca da professora se traduzia em fracasso. Mas coisas sérias nunca me abalaram. De um acidente de carro na Marginal Pinheiros a um assalto com revólver na cabeça há dois dias. Então aquele limão medíocre se fazendo de difícil para a minha vizinha de seis anos... Era sacanagem! Eu queria dizer para a Yasmim procurar outro limão, já que esse não estava cooperando e que os limões são todos iguais! Eu queria entrar na casa dela à noite e jogar a laranja da fruteira no lixo, porque com certeza ela devia ter alguma coisa a ver com isso. Mas achei que talvez fossem visões muito precoces para uma menininha do pré-primário. Não queria ser a responsável por ela odiar os limões para sempre e não experimentar caipirinha (de pinga, saquê ou vodka) na adolescência.

Logo soube que Yasmim só havia tocado a minha campainha para pedir uma música. “E desde quando você conhece Mombojó?” E essa malandra ainda tem um gosto musical bacana! Só faltava fumar e discutir o cinema de Antonioni tomando cappuccino! O limão havia contado que gostava das músicas do Mombojó. Emprestei o primeiro álbum.

Naquela noite Yasmim ligaria o radinho do seu quarto para ouvir a faixa oito, Adelaide. Apagaria a luz e esperaria pelo sono contando limõezinhos espremidos em uma jarra de suco transparente. Eu sentaria para tomar uma cerveja com os amigos, porque de caipirinha já enjoei (elas são todas iguais!) e pensaria em uma maneira de fazer Yasmim colocar esse limão contra a parede. Se ele não quisesse virar suco, que tivesse a coragem de dizer, assim ela poderia abrir a geladeira a pegar uma maçã.

quarta-feira, 12 de março de 2008

O SONHO

Sonhava que mastigava um golden retriever. Engasgou com os pêlos. Tossiu. Sentiu que as unhas do cachorro estavam grandes demais, quando a língua ardeu e o gosto salgadinho de sangue misturou-se à saliva. Engoliu.

Ao acordar, um alívio. Fazia de chupeta a pata da gatinha siamesa. Voltou a adormecer com o sabor de chão sujo na boca e uma picada de pulga na gengiva.

segunda-feira, 10 de março de 2008

TEXTO PARA MILENE RUIZ (Escrito com Elisangela Conti)

(Eu e a Elis escrevemos este conto para a Mi, que se casou nesse sábado. A festa foi “subsolo” e o fato de eu ter pegado meio buquê, quer dizer que algo de bom, longe de casamento, vem por aí! Haha)

Ele é um sujeito normal. Acorda cedo, toma café com leite e vai trabalhar. Talvez ao meio dia em ponto, sua barriga ronque pedindo por arroz e feijão. Quando dá seis da tarde, ele corre pra casa e liga a TV para assistir ao jornal e ao futebol.
O trabalho dela começa junto com a novela das seis. Da maquiagem ela vai para a rua, atrás de qualquer um que já tenha escancarado a vida pessoal para essas revistas que são vendidas nos supermercados. Há quem mate para ocupar o mesmo metro quadrado dos nomes que ela entrevista!
É justamente por ela chegar em casa quando ele acorda que resolveram se casar.
Com vestido e buffet encomendados, salão e igreja alugados, padrinhos escolhidos, ela se mandou para uma despedida de solteira na Bahia. Voltou cinco quilos mais magra. Pegou a doença do beijo. O noivo pensou em cancelar, mas depois de rever os canhotos dos cheques passados para a festança, voltou atrás. Pode ser que ainda planeje uma vingança e fuja com os trocos arrecadados pela venda da gravata. Pode ser que tenha acreditado na versão dela: se hospedou duas semanas em um SPA para entrar no vestido de noiva.
Os convidados souberam da cerimônia apenas dois dias antes. Ela havia se esquecido de entregar os convites por causa do SPA ou da Bahia (escolham a versão que mais lhes agrada). Azar dos noivos! Não ganhariam presentes e correriam o risco de ver gente de calça jeans e cabelo desconectado na festa! Se o noivo não avisasse, talvez ela se esquecesse de ir ao próprio casamento. Uma vez ele faltou na festa de aniversário dela. Ela não lembrou de chamá-lo. Daí surgiram boatos de que ele não existia. Seria apenas uma foto roubada de uma revista de moda retocada no Photoshop? Preferiria ele antes ou depois dos retoques? E ele, prefere ela com ou sem botox?
Apesar da incompatibilidade de agendas, casaram-se no dia oito de março de dois mil e oito. Fotos posadas e jornalísticas foram feitas para quem um dia contestar, exigência da noiva, que dois meses depois seria incapaz de recordar a cor do seu vestido.
Na festa, enquanto ele se diverte, ela se despede. Tem entrevista marcada com Ivete Sangalo, que apresentará à imprensa o seu novo namorado.

terça-feira, 4 de março de 2008

BLUSH VERMELHO-GOIABA

Foi a única que enrubesceu na apresentação. Esperou tensa a indiazinha perua dizer por que queria o estágio. Enquanto isso sua língua secou e as pernas começaram a tremer de um jeito engraçado que a forçava a mexê-las o tempo todo para disfarçar o nervosismo. Lembrou do teste de direção para tirar a carta de motorista. Deixou o carro morrer por não conseguir manter o pé esquerdo firme na embreagem. O descontrole era tanto que seu joelho batia na direção. Na sua vez de falar, a timidez não se escondeu. Alguns apostavam que ela havia passado blush no rosto inteiro. Se ela soubesse, retrucaria “Jamais! Eu não uso blush vermelho-goiaba, mas rosado médio, porque dá um visual queimado de praia”. Começou dizendo o nome. O som do “s” não saiu como gostaria. Sua voz também. Não se concentrou para deixá-la mais grave e o que a sala inteira pôde ouvir foi uma menininha de vinte anos insegura, despreparada e burra. Alguém deve ter pensado em mandá-la de volta às compras no shopping. Outro deve ter olhado constrangido para cima com o intuito de se desligar do que ouvia, tamanha a vergonha que sentiu por ela. Enquanto falava suas bobagens, desejava ter escrito tudo na lousa branca para quem quisesse ler e saber quem ela era realmente. Alguém além daquele nome dito de maneira fraca e com problemas na dicção. Alguém além da máscara de timidez. Alguém capaz de conversar com mais gente além dela refletida no espelho do quarto. Finalizou confessando nunca ter lido Borges e só voltou à estabilidade cinco pessoas apresentadas depois.

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