A PRAGA DE KUNDERA
Praga hoje é destino turístico dos mais cobiçados. Suas calçadas estreitas misturam edificações de pedra com Mc Donald’s e Starbucks.
Antes de eu passar por lá, por Praga passaram guerras e revoluções. Foi invadida e aberta. Por muito tempo foi socialista.
Estive lá em 2009, na época conhecia melhor Kafka que Kundera. E Praga, pelo jeito, também. Kafka tem um museu lá. Kundera não é mais cidadão tcheco.
Entretanto, em 2013, conheci Kundera. Comecei pela Brincadeira. Eu e ele.
A Brincadeira, de 1967 é o primeiro romance de Milan Kundera, que ficou muito conhecido por A Insustentável Leveza do Ser.
A Brincadeira caiu nas minhas mãos por acaso. Tudo começou quando resolvi participar de um Clube de Leitura promovido pela Cia das Letras. Clubes de Leitura são encontros de leitores para falar sobre um livro que foi previamente lido.
Como o encontro, que seria dali um mês, era em torno de A Brincadeira, peguei pra ler.
Mas, distraída que sou, olhei o dia errado. Era o dia, do mês anterior. Enfim, a leitura ficou pela leitura. Adorável engano.
É de um engano também que parte A Brincadeira. Um mal entendido, na verdade. E dele, como uma bola de neve, a vida de um estudante de Praga começa a se transformar e sair totalmente do controle.
Como sua vida não lhe pertencia mais, Ludvik, o protagonista, começa a refletir sobre tudo que está a sua volta. E, misto de filósofo e escritor, Kundera constrói essa história de maneira saborosíssima.
Cada capítulo é narrado por um personagem. Vamos conhecendo cada personagem pela voz dele e dos outros.
E, sim, descobrimos que o mundo nada mais é do que uma visão arbitrariamente construída por nós.
E, não, nós humanos não combinamos antes qual visão seria a certa e, dessa forma, vamos brincando de tentar viver em mundos diferentes.
E o que pensamos sobre nós, e sobre os outros, nada mais é do que o que nós pensamos.
Um grande mal entendido.
A vida é cheia de maus entendidos porque cada pessoa constrói uma realidade. E Kundera nos mostra que, no Amor e na Política, isso pode ser devastador!
“É extremamente raro que o amor físico se confunda com o amor da alma. O que faz exatamente a alma, enquanto o corpo se une (com esse movimento tão imemorial, universal e invariável) a outro corpo?
(...)
Muitas pessoas, depois de terem unido seus corpos, acham que também uniram suas almas e se sentem automaticamente autorizadas, por essa crença errônea, a se tratarem com intimidade.”
Tão acidamente quanto descortinar-nos que o sexo e o amor nada têm em comum um com o outro. Kundera nos descortina, e essa verdade é ainda mais doída, que o conceito de política e igualdade nada tem a ver com a construção de um mundo melhor.
O socialismo falhou porque, como disse no começo, nós não podemos construir um mundo melhor, se não combinamos antes qual mundo construímos. O que é melhor pra um não é para outro. A realidade é arbitrária. O ser humano não deseja as mesmas coisas.
E, o único Estado até hoje que negou a religião, construiu um sistema político tão cheio de dogmas que foi transformado, ele próprio, em uma. Outro, simples (?) mal entendido.
Por que não conseguimos mudar uma vida que não está sendo vivida como imaginamos que seria?
“Sentia vergonha de falar como eles queriam que eu falasse. Seria assim tão covarde? Ou tão disciplinado? Ou, então, tão cansado?”
A Brincadeira é uma viagem pelo mais desconhecido lado do socialismo.
E pelo menos admitido espaço da alma humana.
Embarque nesse primeiro romance de Kundera e, caso se apaixone como eu, pegue o próximo.
“Não; uma casa que é apenas a casa dos pais não é um fio; é apenas o passado: as cartas que chegam dos pais são mensagens de um continente do qual você se afasta; pior, essa espécie de carta não para de repetir que você se perdeu, lembrando-lhe o porto de onde você largou em condições tão honesta e laboriosamente reunidas.
É, diz uma carta assim, o porto está sempre ali, imutável, firme e forte em seu antigo cenário, mas o rumo, o rumo se perdeu!”
E o seu rumo? Se perdeu?
*
A autora do post: Roberta Nader é ativista pra mudar o mundo. Roteirista no horário comercial. Leitora compulsiva. Escrever é uma vontade... Que nunca passa.
Leia o blog dela clicando aqui.