sábado, 7 de junho de 2008

LÍNGUA

(texto lido no terceiro sarau da AIC em 4 de junho)

A assadeira esquenta. Picados, na tábua de carne, a cebola, o alho e meu coração. Escorregam para o inox excitado e chiam lambuzando-se no azeite. Você sempre prefere o azeite. Eu não, ele espirra em meu rosto. É contra o que faço? Inalo o vapor dos temperos. Está na hora. A geladeira impede que a carne apodreça. Escolho.
Acrescento um ramo de alecrim. Os murros começam quando fecho a porta do forno. Enxugando as mãos no avental recém-lavado, abro a porta da frente. Perguntam-me sobre você, Adelaide.
- Sumiu há um mês. Já disse.
São bem menos simpáticos, os dois policiais, desta vez, e como já conhecem a casa, saem à sua procura pelos cômodos. Você sabe, querida, que tenho manias. Não gosto de pessoas bagunçando as minhas gavetas.
Aguardo encostado à geladeira e acendo um cigarro. O maior deles quer me filar um. Entrego-lhe dois, acompanhados do sorriso, que você muito bem conhece. Minhas rugas os relembram como é doce um velho.
- Que cheiro bom...
Choro. Você diz a mesma coisa sempre que o alecrim começa a perfumar a cozinha.
Acham-me gentil quando ofereço um pedaço do assado. Anoitece. Como não matar a fome dos coitados, que nem almoçaram? Culpa de um chefe carrasco que só pensa nos olhos do Secretário de Segurança.
Com as bocas meladas, vão embora satisfeitos. Desculpam-se pelo incômodo.
Ao fechar a porta, vou, vaidoso, comprovar o sucesso da minha receita.
Sua língua continua deliciosa, Adelaide, meu bem.
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