(texto que entraria em CIAO*)
Você chegava às vinte e três horas e quarenta e cinco minutos. Tirava os sapatos e os deixava ao lado da porta de entrada, embaixo do interruptor de luz. Andava até a sala e desligava a TV. Eu dormia enquanto te esperava. O sono me vencia. Tenho certeza de que você me olhava e se irritava por eu ter adormecido no sofá mais uma vez. Sem me acordar, ia para o banheiro abria a gaveta e pegava todas as caixinhas de remédio. Eu procurava deixá-las vazias e sempre quis estar ao seu lado quando você as fosse abrir. Ficava tão bonito irritado. É que aquela ruguinha entre as sobrancelhas se formava e te deixava mais maduro. Você ficaria lindo mais maduro. Ia para o banheiro abria a gaveta e pegava todas as caixinhas de remédio. Eu procurava deixá-las vazias, mas não era sempre que me lembrava ou queria. E como se fosse uma criança gulosa diante de balas de todos os sabores você abria os potinhos e jogava dentro da sua caneca de fazer gargarejo depois de escovar os dentes. As suas balinhas tinham tamanhos, formas e cores diferentes. Você gostava mais daquelas com duas cores e por isso colocava maior quantidade delas. Jogava dentro da sua caneca de fazer gargarejo depois de escovar os dentes e bebia. E assim você morria mais uma noite.
Eu acordava à zero hora e dez minutos. Olhava para a porta de entrada e via o seu sapato debaixo do interruptor de luz. Desesperado, corria até o quarto e te encontrava desmaiado. Era quando eu podia te observar sem que isso te incomodasse do jeito que te incomodava ultimamente. Sem que você metesse a mão na minha cara. Sem que você me proibisse de sentir alguma coisa e sem deixar que o seu ódio por mim transparecesse e a sua vontade de me mandar embora te tomasse. Eu costumava me trocar e te levar ao pronto-socorro. Você acordava e tudo voltava ao normal: a sua frieza, indiferença, raiva, impaciência. Por isso naquele dia, resolvi mudar a nossa rotina. Eu poderia acabar de vez com o seu sofrimento. Não com o meu. Mas não me importava. Eu também era infeliz, mas não tinha alguém que me amasse como eu te amava. Não tinha alguém que quisesse acabar com o meu sofrimento. Por isso peguei o travesseiro e coloquei sobre o seu rosto desacordado. Fui para o banheiro e abri a gaveta das caixinhas de remédio, lá também estava ela. Eu procurava deixá-la vazia, mas não era sempre que me lembrava ou queria. Voltei ao quarto. Você com um travesseiro na cara. Atirei uma, atirei duas, atirei três vezes. Aliviado, voltei à sala, deitei no sofá e liguei a TV. Mas estar ali não fazia mais sentido. Voltei ao quarto. Você com um travesseiro ensangüentado na cara. Eu me deitei na cama e dormi ao seu lado, pela primeira vez depois de tantas noites.
*CIAO – Estréia: 06 de outubro – Instituto Cultural Capobianco – Outubro - Sábados e Domingos – 21h
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