Me deixa contar deste peruano, que conheci a caminho de Aguas Calientes, que é a cidade mais próxima de Machu Picchu e que todo mundo costuma passar a noite antes do passeio. Eu subi no trem, cruzando os dedos para desta vez a sorte me atirar um rapaz bonito na poltrona ao lado, e quando achei a número doze do vagão B, vi que meu vizinho estava atrasado. É jogador de futebol, criança ou vai ficar aí vazia. É sempre o que acontece comigo. Me lancei do ladinho da janela - gosto de ver a paisagem correndo - e abri o meu livro. Tava no comecinho, era do Alberto Manguel - eu gosto desses argentinos quando escrevem. Aí chegou o fantasma da poltrona vazia, que quem sabe mudaria o rumo dos meus quatro dias no Peru. Eu sou azarada mesmo. Fisicamente, era a pessoa mais desinteressante que eu conheci na vida. Sem drama, era mesmo. Ele tinha a versão espanhola do seu nome, então Juán, e arregalou os olhos do mesmo jeito que você quando me viu pela primeira vez. Ele era um cara feio. Muito feio - apesar de ter os seus olhos quando arregalados. E diferente da reciprocidade que te dei, eu tive nojo dele. Não sei se porque suava ou porque parecia babar por mim. É, ele ficava mostrando aqueles dentes como se tivesse acertado a loteria. De repente eu era, sem dúvida, a mulher mais bonita do mundo. Exatamente como você me fez sentir naquela noite e em todas as outras, sempre que a gente se encontrava cambaleando no bar, culpa da labirintite que beber até o começo da manhã dá. O peruano era grande, dum jeito nada atraente, e preenchia a sua poltrona e mais um pouco da minha. Eu não gosto de viajar ou ir ao cinema sem poder encostar os cotovelos nos braços das cadeiras. É desconfortável. Ele era espaçoso ou tava inventando um jeito de relar em mim. No Peru as coisas devem ser assim. Mas eu não deixei ele tocar um pelo do meu braço. Me joguei bem pertinho da janela pra ele não me encher o saco. Mas o peruano deixou claro que queria papo e, como havia momentos em que a minha retina parecia descolar e eu não conseguia mais ler o livro do Manguel, resolvi matar o tempo - até meus olhos se recuperarem - respondendo a algumas perguntas dele, exibindo um sotaque portenho que tentei imitar dos pais da Gabriela. Ele elogiou o meu espanhol. Isso deu uma acarinhada no meu ego e eu devo ter até sorrido pra ele, não tão aberto como fiz pra você quando se apresentou pra mim. Você ainda lembra? Porque eu sim. Caramba, como o seu olho brilhava. Faiscava. Eu era a mulher mais bonita do mundo pra você também. E eu me apaixonei ali mesmo. Na porta do banheiro. Deprimente só pra quem ouve ou lê essa história. Voltando ao peruano suado ou babão, contei pra ele o que eu fazia no Brasil e descobri que ele era bancário e eu pensei Nossa, e o cara ainda é bancário. Eu me enchi da conversa, porque não entendia um terço do que ele falava, enrolando a língua ou salivando em cima de mim. Tava cansada de perguntar Quê? e não entender quando ele repetia. Então voltei pro livro, porque tava mesmo interessada na história - era policial e tinha vários narradores e surpresas - deixei o peruano bancário comendo sozinho o amendoim que serviam no trem. Imaginei que podia ter um pedaço bem no meio do dente quando ele sorrisse daquele jeito insuportável pra mim de novo. Quando chegamos a Aguas Calientes e eu dei graças a Deus que ia me livrar do fardo de mulher mais bonita do mundo, me despedi como se tivesse adorado conhecê-lo. Às vezes eu consigo ser filha da puta com esse tipo de homem. Eu não dei a entender que queria algo com ele, sabe? Só quis consertar toda as minhas esnobadas durante o percurso e sair de boazinha. Sei que isso deve confundir pra caramba a cabeça de um cara que te olha com faíscas nos olhos. Não você, claro, ele. Deixei a estação com a consciência tranquila, sem pensar no que o peruano sentiria. Afinal, eu nunca mais veria o cara, certo?
Assim que me instalei no hotel, resolvi sentar pra comer alguma coisa peruana, tipo ceviche ou porquinho-da-índia, e tomar chicha ou pisco, num restaurante decorado com trabalhos artesanais e aqueles tecidos tão coloridos, de que até comprei um tênis. Eu estou no fim duma sopa de quinua e quem desce as escadas do restaurante que abrigava uma pousada no andar de cima? Quem me dispara aquela merda de olhar que me obriga a lembrar de você? Lógico que o peruano se convidou pra sentar comigo. Acho que porque fui simpática, não tava muito a fim de parecer louca e fingir que não o tinha visto depois da minha despedida super fofa na estação. Enfim. Por dentro eu tava irritada. Minha noite naquela cidade estava destinada ao fracasso. Eu sugeri que ele pedisse a mesma sopa de quinua e ele obedeceu. Acho que quis me agradar, porque não me parece o tipo de cara que janta sopa. Depois de comer, eu pensei em dar uma volta por Aguas Calientes, que é uma cidade bem charmosa e bem pequena também, e por causa desse tamanho minúsculo eu não pude fugir dele, inventando que ia dormir. Ia topar o peruano na praça e ele saberia que eu tinha mentido. Aí Adeus boa moça que se despede com meiguice na estação de trem e Bem-vinda vaca que ignora homens feios e chatos e suados e bancários e que te olham como alguém que vai te magoar um dia. Dei uma volta xoxa com ele pela rua principal e depois sim falei que queria ir dormir. Eu queria mesmo. Esse peruano me dava sono. Não falava nada e quando abria a boca era no meio daquele sorriso bobo, que só você pode ter. É logico que ele me levou até a porta do hotel. Saco. Me despedi sem ser tão gentil desta vez. Vai que.
No dia seguinte eu finalmente conheceria Machu Picchu e acordei cedo pra pegar o ônibus. Na entrada do parque, descobri que tinha esquecido a bateria da máquina fotográfica no quarto do hotel e acabei pedindo pruma freira me fotografar durante o passeio. Percebi que um grupo de caras tava rindo de mim e eu me senti meio idiota por parecer que viajava com minha tia-avó freira. Isso não foi nada porque no começo da caminhada, num daqueles imensos terraços de Machu Picchu, sentadinho com sua excursão, tava lá o peruano. E aí não sei o que me deu, senti vontade de contar pra ele que tinha esquecido a bateria da máquina no quarto e ele se propôs a tirar uma foto minha e me mandar por email. Esse foi um pretexto pra ele pegar o meu email. Você tá entendendo? Gente como ele sempre arranja um pretexto pra pegar o seu contato. No fundo ele sabia que não ia passar disso, nem se eu enchesse a cara de pisco no Peru, longe de todo mundo que eu conhecia. Eu anotei o email num papel pra ele. Nunca mais vou ver esse carrapato mesmo. E se o nome, o sorriso e o olhar dele têm alguma relação com você, esse email nunca vai chegar e pronto, obrigada, não vou ter mais notícias desse tal Juán. Tratei de me juntar ao meu grupo e deixei o Juán lá com o dele. Durante o passeio não nos vimos. Esse azar me foi dado no fim, ele quis porque quis fazer uma foto minha numa escadaria e na hora do clique a bateria dele também acabou. Eu tava lá com uma cara de besta sorrindo pra máquina dum cara chato. Ele pediu pra eu esperar, que ia desligar e ligar de novo e eu fui muito bacana em concordar com a ideia. Aí o grupo de caras que já tinha rido de mim com a freira passou e me viu posando pra máquina do peruano. Eu me irritei e desci a escadaria, falei Nos es necesario, Juán, gracias. E saí aindando na frente dele. Me deu sede todo o passeio e o estresse da foto, então saí do parque pra comprar água e ele veio comigo. Sem eu pedir. Procurei me afastar enquanto me hidratava, olhando pra Wayna Picchu. Como aquele lugar era lindo. E tava cheio de gente que eu poderia conhecer e tudo mais. Me aproximei dele - o pescoço pingava de tão suado - e perguntei se ele tava indo embora, pois eu ia entrar em Machu Picchu de novo pra ler o meu livro em um dos terraços. A cara que ele fez não foi boa, mas pelo menos foi de alguém que entendeu que eu não queria a companhia de ninguém pra ler o livro do Manguel.
Mais tarde, no almoço, sei que ele me viu sentada na varanda de um restaurante sozinha, mas dessa vez resolveu me ignorar. Se você acha que eu só gostei de você porque fui ignorada, está errado. Agradeci ao deus sol por deixar de ser a mulher mais bonita do mundo naquele instante no Peru e continuei o almoço. Foi a última vez que olhei para aquele cara todo desinteressante.
Uma semana depois, recebi em minha caixa de entrada a foto com a montanha Wayna Picchu ao fundo e o quanto o autor do email tinha gostado de me conhecer. Achei meio humilhante. Mas deve ser uma fase ou não gostei mesmo dele nem daquele olhar iluminado. E eu fiz o que você faria comigo: nunca respondi. Eu não vou ver mais esse cara, não é? Tenho até receio de pensar isso em público.
2 comentários:
adorei tb!
:)
beijos
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