segunda-feira, 7 de novembro de 2011

VONTADE DE RESPIRAR


Clara não tem olhado pra dentro. Faz mais de um ano. Desde que. Desde que abandonou a sua banda. Parou de ouvir música, como se numa dieta. Foi naquele dia. Ela decidiu nunca mais ligar o rádio. E o ignora até hoje. Eu sou testemunha. Passávamos as tardes de sábado coladas ao micro system que a tia deixou, quando foi morar com aquele rapaz, dezessete anos mais novo. Que encarava os meus peitos. Talvez a minha bunda. Não tive coragem de descobrir. Por causa dele, ainda evito as blusas decotadas, nunca sei quando vou encontrar garotos, donos do mesmo olhar dissonante, soltos pelas ruas. O micro system tem cômodos para duas fitas cassete, cinco CDs e um vinil, e embora minha mãe tivesse se livrado de todos os discos que colecionamos até o nascimento do CD, ainda podíamos ouvir os de Roberto Carlos, Vinícius de Moraes, Elis Regina e Aretha Franklin, que consegui salvar, graças à gaveta de calcinhas. Foi como abrigar fugitivos. Clara sempre cantava por cima da Aretha e eu me perguntava como ela ainda conseguia ser tão branca.

Nossos sábados eram comemorados no tapete felpudo e verde da sala de estar. Deitávamos em nossas almofadas gordas, as mesmas que éramos obrigadas a usar toda vez que a tia do interior vinha de visita e nos tomava os travesseiros para cumprir suas noites bem dormidas.

A Clara que dividia músicas comigo não é essa que toma o café da manhã na cadeira ao lado da minha, antes de mim, para que eu não a meta em conversas. Ou a que se tranca no quarto durante as noites e talvez chore quando todo mundo dorme ou seja vítima de sonhos desafinados. Se posso voltar ao minuto em que Clara deixou de cantar, gostaria de dizer-lhe que foi rebeldia. Os dias de hoje só conhecem a mudez de minha irmã. Não há backup do som açucarado que só a voz dela fazia.

Eu acho que sinto os olhos da Clara alagando toda vez que a mãe estaciona num canal de TV exibindo um show. Eu posso ver a tristeza da minha irmã se escondendo debaixo de sua indiferença. E escapando pro quarto, onde talvez desague mais uma vez ou agrave a frustração com algumas notas engasgadas desde aquele dia. A Clara tem certeza que nunca soube. Meu Deus, ela nunca se ouviu? Ela se esqueceu? A banda tinha um líder. Toda banda tem. Todo líder tenta forçar suas perspectivas na goela alheia. Todo líder no fundo é inseguro e usa o dom da manipulação pra embelezar suas próprias ideias. A sede do líder só é estancada quando consegue se enxergar em seus discípulos. Todo líder entulha na sua cabeça que você não passa de um equívoco que o mundo acolheu sem querer. Todo líder é narcisista pra caralho. E assim Rodrigo calou Clara. Temo que pra sempre. Por que Clara não reage? Por que ela simplesmente não grita? Prefere sobrar silenciosa pela casa. Pelas ruas do bairro. Em festas de família, é a mesma personagem muda. E se, eufóricos e bêbados, revivem os velhos tempos, insistem numa Clara de antigamente. Insistem na voz cor de rosa cintilante que ela borrifava em microfones. Que combinava com violão e bossa-nova, mas também com guitarra suja e letra suja. Clara não se reconhece nas histórias que eles contam entre cuspidas alcoólicas e risadas sem sentido. Ela ouve sua vida como se de uma outra pessoa. Rodrigo foi competente. Rodrigo construiu tão bem a história de cordas vocais irrelevantes. Rodrigo, seu mentor. Acreditou como em coelho de Páscoa. Não acordou desse pesadelo mentiroso. A ingenuidade da Clara deixou Rodrigo se espalhar por seu corpo até estrangular a coisa mais bonita que ela sabia fazer.

Hoje arrisquei ouvir Aretha. E hoje é sábado. E Clara nos deu as costas, pegando a chave do carro, presa à mesma bolinha de futebol suja, presente do ex-namorado, que ela nunca gostou tanto assim - e talvez, por isso, não se importe em manter. E enquanto Aretha arranha as paredes ocupando a sala, a casa, Clara pausa melancolias. E leva o coração para pegar um pouco de ar pelo bairro em que crescemos. O vento geladinho entrando pouco pela janela, mas o suficiente para trazer cheiro de ontem. Clara inalando passado. Daqueles tempos em que você mora pertinho da casa do namorado e, em fins de anos escolares, rabiscam a sua camiseta com nomes e promessas que agora você custa a decifrar. A vontade de ser. Canta, Clara! Feliz 98!

5 comentários:

Angélica disse...

Texto lindo! :)

Anônimo disse...

Canta, Clara! E respira..

Unknown disse...

oba!

Kira disse...

a vontade de ser...

Vanessa Simões disse...

Me esforcei pra relembrar uma Clara do meu dia a dia, tentei, tentei e inventei. Só a encontrei em pensamento, mas a admiti feita de vazio. Texto incrível.

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