quinta-feira, 19 de abril de 2007

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Já não somos mais jovens. Há pouco tempo me dei conta. Somos lentos para atravessar as ruas na faixa de pedestres. Os faróis de hoje abrem depressa demais. Você segura a minha mão? Vamos.
Ouvi, dia desses, uma menina dizer que somos chatos quando falamos demais do nosso passado. Deveríamos ser enfeites? Bibelôs que cozinham aos domingos para a família e ficam sentadinhos e quietos na hora do cafezinho? Não sou nenhum bichinho de estimação, viu. Sempre conversei. Sentava com as meninas e falávamos de tudo. Elas tinham tempo e vontade de ouvir o que eu precisava contar. Eu fazia o mesmo.
Acham-nos entediantes por sermos lúcidos. Que preferem? Um derrame, uma cadeira de rodas, alzheimer? Estão acostumados a sentir pena de nós. Não quero. Sempre trabalhei e paguei as minhas contas. Lembra de quando ganhei aquele prêmio? Também jogava vôlei. Jogava bem o vôlei.
Era bonita, você se lembra? Claro que sim. Meus cabelos brilhavam, todos pediam o nome do meu xampu. Dançava. Eu rodopiava. Aquelas saias modernas. Eu adorava girar. Não caía e não ficava tonta. E agora querem me deixar sentada na cadeira com um vestidinho florido e sorriso estampado.
Fomos tantas coisas. Não vou deixar que ninguém me faça esquecer. Você me escolheu. Não foi por falta de opção, foi? Eu era especial, não era? Então por que ela falou aquilo?

quarta-feira, 18 de abril de 2007

VOCÊ NÃO TROCA



Eu troco meus dias livres por dias livres com você. E troco aquela noitada por filme em casa. Eu troco todos os telefonemas às amigas por uma ligação para você. Eu troco, não tem problema. E troco duas rádios memorizadas no som do meu carro por duas de sua preferência. Eu troco a minha reunião por um almoço com a sua mãe. Eu troco a minha timidez por mãos dadas. Eu troco Nova Iorque pela Baleia, se você quiser. Você quer? Eu troco minha frieza por olhos encantados. Eu troco meu sono por um bate-volta. E olha que não troco meu sono por nada. Também não faço bate-voltas por nada. Eu troco meu estado civil. Eu troco alguns planos meus pelos seus.
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Eu troco o aniversário da minha melhor amiga pelo seu cansaço. Eu troco a sua companhia pela solidão. Eu troco a minha família por um dia com você. Eu troco o meu esporte pelo seu. Eu troco a minha casa pela sua. Eu troco um romance por um filme de ação. Mas só essa semana. Na próxima, você troca.
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Destroco a sua vida pela minha.

terça-feira, 17 de abril de 2007

A GATA E O CAFÉ


Era uma gatinha muito particular. Chegava a casa da dona pela manhã, após longos passeios pelos bueiros da cidade. Já não era mais branquinha. O tom cinza de poeira cobria seus pelos curtos. Seu reloginho biológico avisava as oito horas da manhã, então ela aparecia pela entrada dos fundos da casa. Miando. Miava. Localizava o rosto moreno da dona, sempre à mesa da copa, que se levantava e servia-lhe a ração de salmão & atum na tigela verde. Na vermelha, água.
A dona da gata voltava ao seu café da manhã. Manteiga, pão francês, banana, leite e café. O cheirinho gostoso do café. Toda manhã ele visitava a cozinha da casa de pé-direito baixinho, baixinho. Saía da cafeteira italiana, que chiava logo que a água fervia. Chi chi. Chegava ao nariz grande da dona. Que cheirinho bom. Atravessava a porta da cozinha, rumo à lavanderia. Passeava pelas roupas ainda molhadas e dava bom dia ao sol. Era quando a gatinha acordava. Ela, que dormia no telhado em cima da máquina de lavar roupas, toda as noites, sem conhecimento da mulher morena, despertava assim que o cheirinho do café recém-passado entrava no seu nariz geladinho e molhado.
Terminada a refeição, gata e dona sentiam a barriga cheia. Uma moleza. A gata entrava na cozinha novamente, muda, e olhava a humana com seus olhinhos amarelos. A mulher pegava uma xícara de plástico e preenchia com o café cheiroso. Levava ao chão. E assim a gata bebia todo o líquido pretinho e gostoso. Não dormia o dia inteiro. Depois da última gota, as duas, cúmplices, se olhavam de novo. A dona recebia um “miaubrigada” da bichana, que partia. Não havia desespero, nem preocupação por parte da mulher. A gatinha voltaria no dia seguinte, às oito em ponto, assim que sentisse aquele cheirinho.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

OURO PRETO


Decidiu fazer aquilo, que há muito tempo desejava. Fechou o apartamento alugado na Vila Romana. Pediu mais um mês à proprietária, assim a mãe poderia vender todos os móveis que um dia comprara, cheia de planos. Decidiu levar apenas o DVD e a vitrola. Os discos chegariam depois. Não gostava mais da geladeira, das cadeiras do fogão. Até a mesa de centro era a cara dele.
Decidiu fazer aquilo, que há muito tempo desejava, em abril. Estava um friozinho bom, mas o céu, aberto. Lembrou da época na Toscana, em que um casaco, ao sair de casa, era preciso.
Foi de carro, com medo. Era a primeira vez que se aventurava numa estrada. Sua estréia não poderia ser pior. Buracos e mãos duplas definitivamente a deixavam estressada.
Ouro Preto era logo ali depois de Belo Horizonte, depois da serrinha. Já podia sentir o cheiro gelado das montanhas. Sensação boa. Sempre a fazia sorrir. Pensava nas ruas de paralelepípedos e nos restaurantes charmosos. Recordações. Queria apagar ele daquela cidade. Era impossível. Estivera lá sempre em sua companhia. Passeavam por cada igreja e por cada lojinha de mãos dadas. Torceu para que não levasse o ano inteiro, que passaria ali, para se esquecer.
Na cidade mineira ficaria em paz. Adorava a idéia de ser vista como forasteira. Uma pena não poder chegar num conversível com óculos de sol grande e lenço no pescoço. Uma pena também não poder chegar de escarpin, afundaria o salto no vão entre os paralelepípedos, assim que descesse do carro. Perderia a pose. A curiosidade que causaria nos moradores daria lugar a piadinhas ditas pelas costas. Por isso resolveu ser mais moderna e chegar de All Star, era alta e podia se dar ao luxo de calçar tênis.
Uma vida diferente era o que esperava. Um pouco de solidão pelas manhãs, um banho morno no banheiro de vitrais. Depois o som dos teclados, tac tac tac, escrevendo histórias. O cheiro dos seus temperos na hora do almoço e o prazer em fazer tudo na panela de ferro. Temperos também se pareciam com ele. Escolhiam juntos em lojas especializadas. Tentaria transformar tudo em passado nas noites charmosas subindo e descendo escadarias e ruas, entrando como intrusa nas festas das repúblicas. Homens bebendo cerveja e olhando as meninas. Haveria de ter um gato pingado por lá, assim como ela. Poderia transformá-lo em sua nova dificuldade, em seu novo passatempo, na sua saudade.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

HOJE NÃO.



“Hoje não. Amanhã”. Ela sabia que uma hora passaria por isso. Já não se sentia mais bem-vinda na vida dele.
Por que "hoje não"? Tem alguém aí? Está ausente? Fazendo faxina?
Se hoje não, amanhã também não. Nunca mais.
Humilhação é pensar que seria capaz de passar na frente da casa daquela fulana para descobrir se o carro dele estaria por lá. Como gostava de um pouco de drama na vida, desejou se deparar com esse desgosto. Ainda bem que não estava. Foi melhor. Ela jura que arrebentaria a porta e o expulsaria dali a tapas! Sem-vergonha. Sua cama mal esfriou.
Resolveu ir para casa. Na ponte, pela primeira vez, sentiu vontade de chorar. Chorou de raiva. Por que ele mentiria? Ela não merecia. Sempre foi tão sincera, já confessou até não amá-lo.
Agora ela só queria que “amanhã” chegasse logo para recusá-lo, assim ele sentiria o mesmo gosto do choro salgado da ponte. Na esquina de casa, limpou o rosto na manga do casaco para que a irmã não percebesse nada. Limpou o pé no tapete, deu boa noite, espiou o filme que passava e foi dormir. Aquele coração apertando.
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