sexta-feira, 3 de julho de 2009

ALICE

Aquela padaria me lembra Alice. Não porque já estivemos juntas lá. Nem porque ela me segredou que o pingado deles é o melhor da cidade. Mas por causa de um rapaz que expôs para a pessoa ao lado que se lembrava de Alice sempre que passava por aquela padaria. Estava na minha frente na fila do teatro. Quem falava de Alice? Da minha Alice. A que presente ela pertence, do qual agora me exclui? Senti ciúme e desde então troco a rua e o semáforo pela padaria quando passo por ela. Alice pode estar lá. Me apropriei da memória de um estranho. Fiz a relação dele com Alice tornar-se minha também. Por quê? Se o que tínhamos era tão mais profundo que a imagem dela sentada num balcão tomando refrigerante ou pagando a conta com seu cartão de crédito? Eu pensava em Alice quando ouvia uma música dos Beatles na rádio. Eu pensava em Alice quando me perdia em seu bairro por causa de entrevistas fracassadas de emprego. Ou mesmo quando, sem querer, abria o guia de ruas em alguma página da Bela Vista. Às vezes colocava o vinil de qualquer um - Pavarotti, Caetano, Aretha – só pra ouvir o chiadinho debaixo de suas vozes. O chiadinho hipnótico aos olhos profundos e escorregadios de Alice. Decorei um parágrafo inteiro de seu segundo romance e, meio bêbada, meio impulsiva, recitei para ela no meio de uma festa. Alice não se lembrava de ter escrito nada do que naquele momento ouvia junto com a música. Talvez não fosse mais a dona daquele desabafo. Quando você voltar, eu vou arremessar no seu cinismo todas as flores que ganhei. Você vai espanar as pétalas que escorreram para o ombro e partir. Quando estiver a cinco passos de mim, vou cantar aquela música que você não decora. Você vai voltar e provar que prestava atenção quando eu te ensinava. Eu vou ouvir, séria. Vai me olhar com a mesma expressão de quando leva bronca, pegar a rosa mais despetalada do chão e entregá-la a outra, como você sempre faz. Eu vou desligar a sua cena e tomar o copo de cerveja para não mostrar que minhas mãos tremem. Vou esperar no balcão alguém com um ramalhete. E quando você voltar eu vou atirar mais flores na sua cara e depois que você cantar pra mim, eu volto pra você. Você sabe. Eu volto. Ela me disse Não sou eu. Mas essa ideia de Alice ainda me toma. A padaria da qual o rapaz se referiu é só uma tentativa de não tirar Alice das minhas páginas em branco. Mas ela costuma evaporar sempre que me aproximo. Um avanço obrigatório ao fim do seu livro. Páginas virando sem o meu consentimento. A vontade de se tornar mais uma de minhas lembranças. A lembrança de uma padaria. A lembrança de um nome. Alice.
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