segunda-feira, 30 de março de 2009

DEBAIXO DA TERRA


Confortar mãos antes da partida. Saber que pode ser a última. Como anunciado outras vezes. Tantas. Os olhos ameaçando saudade. E ninguém encontra palavras para amenizar as próximas semanas solitárias. Porque não existe necessidade. Um dia, a tristeza evapora mesmo. O vazio é curado com a rotina morna e distraída. A vida quase volta a ter sentido quando um cheiro te engana vestindo um sopro de vento no meio da noite. Seria o mesmo? Não. É sempre um cover mal feito da realidade. A realidade é embaçada. Deveria ser mais simples memorizar os bons momentos.
A despedida é difícil. Assim como a verdade. E o que anestesia a ausência são as fotografias que poderiam ter sido apagadas - mas o apego proíbe. A lembrança da certeza entre uma música e outra. A certeza que se desmancha com o fim das madrugadas. Com a primeira marcha do carro engatando. Com uma caixa postal.
Quando se resta, a única coisa que se tem a fazer é fechar os olhos e reprimir o reflexo público de um adeus dissonante.

quinta-feira, 19 de março de 2009

EU QUERO SOPRAR CHUVA


Para ouvir ao som de Vai Desabar, do Gero Camilo

Me lembro de quando fiz dez anos. Uma chuva, como as dessa semana, invadiu São Paulo. E eu me enchi de orgulho por honrar a fama da cidade bem no meu dia! Desde então achei que todo dezenove de março fosse "desabar água". Pro resto da vida. Da minha. A caminho do shopping, o barulhinho de que tanto gosto. Gotas de água e granizo esparramando-se pelo capô do carro. Competiam com trovões. Eu estava feliz. Na loja de brinquedos, a voz do meu pai ordenou. Escolha qualquer um! Mas só um! Ele sempre fez assim. Eu sempre obedeci. Nunca abusei da carteira dele. Nunca pedi o castelo da Barbie. Nunca pedi uma casa de bonecas de dois cômodos. Pedia canetinha. Papel de carta. Bercinhos. Já o meu irmão. Bom, deixa pra lá. Escolha qualquer um! pra mim nunca funcionou. Travo com possibilidades. Prefiro que o presente me ache e pronto. Talvez por isso ainda não tenha alugado um apartamento. Não tenha viajado. Também não gastei os vale-livros que ganhei do pessoal do Antro. Não escolhi o namorado. Por isso arranjei um emprego que nem procurei.
De poucas coisas tive certeza na minha vida. De poucas talvez ainda vá ter. Certeza é da morte. O clichê dos clichês. De que quero escrever até lá. De que gosto de me vestir de preto. De que vou acordar cedo amanhã. De que gostei do filme do Selton Mello. Só. Saí da loja de brinquedos com uma maquininha de fazer chocolate debaixo do braço. Não amo chocolate. Mas gosto como materialização de galanteios. Menos do que flores. Talvez não fosse aquilo que eu quisesse ganhar de aniversário. Ainda não descobri. Hoje, não pedi nada ao meu pai. Não precisa. Eu adoraria um apartamento. Mas ainda não consigo abusar da carteira dele. Também não sei o que pediria se ele me perguntasse. Dê o que quiser. Sempre respondo assim. Não sei mesmo. Pensando bem. Queria saber tudo. Queria pedir uma pendrive abastecida de todos os bons livros do mundo. Queria plugá-la na minha cabeça e no segundo seguinte saber mais que o Abujamra, o Contardo, o Gearld Thomas. Mas não vai acontecer. Então vou de degrau em degrau. Por qual começo? Ou melhor, continuo. Por qual? Essa quinta-feira ainda não choveu. O céu azulzinho se esconde atrás de uma fumaça carregada de choro. Se eu não voltar cedo pra casa, pode ser que não chegue a tempo de ouvir o meu Parabéns. A família vai estar lá. Meu sobrinhozinho. Até o cachorro da Paulinha! E eu vou sentir falta da minha Pérola, que fugiu há tanto tempo. Hoje à noite, vou soprar vinte e oito velas mergulhadas no bolo de brigadeiro da Tia Dulce – o mais delicioso do mundo, que ela faz pra todos os meus aniversários desde que nasci, porque não faço questão de nenhum outro (mais uma certeza da minha vida) – e fazer um pedido. Talvez chova nesse momento. O que será que vai se realizar? Juro que não vou pedir dinheiro. Nem mais mil pedidos. Vou pensar em algo que eu realmente precise. Antes que esse desejo me encontre. Enquanto as gotas de chuva atacam os vidros temperados da sala construída pelo meu avô. Eu queria muito ele hoje comigo. Disso sim eu preciso. Mas não vai acontecer. Talvez eu peça mais certeza nas decisões. E se depois do sopro chover de verdade, estou preparada para as consequencias.

sábado, 14 de março de 2009

AMIZADE POSTIÇA

 

Foto0269

Os excessos de uma vida noturna deram à luz Itacoatiara. Uma verruga horrível. Alojada na minha bochecha esquerda. Como as das bruxas. Incompetente até para nascer na ponta do meu nariz! E me disseram ontem que eu poderia ter sido queimada viva antigamente. Tudo porque a madame se instalou em local exposto. Eu, bruxa? Eu voando vassoura lua cheia? Eu gritando. Eu ardendo. Meus trapos virando cinzas em praça pública. Quem dera! No meu caldeirão patinhas de aranha, asas de morcego e vingança. Uma pitada de noz-moscada que a me mi piacce. Alguém prova? Sei que a Itacoatiara, apesar de horrenda, fez sucesso. Por causa dela, ganhei poemas de amor, convites para um musical e um suco de laranja na cara - eu juro que não estava olhando pro namorado daquela menina chatinha! Mas há três semanas essa verruga-mala só me incomoda. Mais nada. Há três semanas. Desde que desabusei da noite - dias seguintes mudos e taquicardíacos. Tivemos uma conversa sóbria e definitiva. Itacoatara e eu. Percebi: não é flor que se cheire. É verruga fedida e amarga. Ela insistiu em ficar. Eu proibi. Não dá, minha filha. É o meu rostinho lindo o prejudicado na história. Conheço ele desde pequeno. Desde que ele assustava os garotos no ginásio. Nada feito! Fora, Itacoatiara! Depois de tantos olhos repugnando-se com as formas grotescas dela - inclusive o meu, diante do espelho. Eu poderia tirar uma foto assim ou assado, mas essa verruga... - a maldita se foi. Deu pena. Ela foi sem querer. Foi sem querer! Esbarrei a mão esquerda ao lavar meu rosto e quando vi, a desagradável viajava pelo ralo da pia do banheiro. Açúcar para estancar o sangue. Que as baratas não sintam o cheiro! Adeus, minha querida coisinha feia. Deixe o meu rostinho lindo desabitado da sua companhia inútil. É claro que depois da partida dela, nunca mais recebi os poemas. Mas não tem problema. Amanhã compro um lápis de olho cor marrom e reproduzo Itacoatiara. Uma verruga falsa colada na minha cara de poucos amigos. E quando não me servir mais, passo o demaquilante e bebo uma Coca.

sexta-feira, 6 de março de 2009

PARECIA DE AQUARELA

 

O insetinho queimando dentro do lustre. Um barulho a menos para desconcentrá-lo. De quê? Há horas olha para o quadro da irmã morta. Lembra-se do vestidinho lilás da foto. Foi a mãe quem lhe deu em um aniversário. Ela odiava as mangas bufantes. Reclamava Mãe, elas pinicam o meu queixo! Mães de pequenas princesas não ouvem. Mães de miniladies só enxergam e vangloriam-se. A menina mais linda do prédio! Como se a franja bem cortada e o cabelo louro – natural sim senhora, a mãe ofendia-se – fossem medalhas de honra ao mérito. As perninhas brancas ainda lisas, lisas. O seio vazio sufocado no tecido. Como seria se ela ainda estivesse aqui? Dormindo no quarto ao lado. Ainda pode ouvir sua respiração. Ainda escuta o choro dela de vez em quando. Esta noite não. Esta noite se lembra do olhar vago que ela tinha. Sempre deslizando anônima pela casa. Sua beleza empanada por alguma coisa que aos sete ainda não se sabe explicar. Ele mesmo, hoje com seus vinte e três, é incapaz de definir sentimento. Raiva, ciúme, alegria e ponto. Ela gostava de brincar com o bercinho desocupado. Nana nenê que a Cuca vem pegar. Uma vez roubou o canivete dele. O canivete virou boneca dormindo no bercinho. Nana nenê. A mãe não fala dela. Nunca falou. No velório, não quis abraços. Dizia Não se preocupem comigo. Não olhou na cara dele. No velório, ficou segurando as mãos dela. Fria. Pálida. Pequena. Mãos de miss de tão macias. Não deixou ninguém chegar perto. Ele sentado na cama continua olhando o quadro. Chora desespero, chora ausência. Enxuga as lágrimas e abre a primeira gaveta da cômoda. Escondida entre as roupas íntimas dele, a calcinha de rendinhas verde. Aproxima-a do rosto e chora amor, chora desejo. Goza saudade.

 

domingo, 1 de março de 2009

QUER OUVIR?

Tinha um show pra ir. Bacana. Falar bacana voltou a ser brega? Desde quando? Tinha esse show. De uma cantora que usa saias de fada. Usa saias de fada e fala palavrões quando o guitarrista sola. Eu gosto. Já subi no palco e dancei entre as pernas dela. Ela lambeu meu rosto. Imagina, é cena. A saliva dela é quente e deixa cheiro de camomila. Existe pasta de dente sabor camomila? Existe dente estressado? Deve ser de gente que tem bruxismo. Não. Não fui ao show. Claro que não! Afinal estou aqui começo de madrugada te ligando. Poderia ter ido, né? Deveria? Não quis. O lugar é muito cheio. Escuro também. A música estaria alta. Hoje eu só queria ouvir pessoas. Qualquer merda que quisessem me falar sobre um assunto de minha escolha. Eu também sei escoher, sabia? Lógico que não! Ninguém me falou nada. Meu telefone também não tocou. Ele tem tocado pouco. Sabe o que eu fiz? Apaguei todos os números da agenda. Não é bobagem. Sei de cor o telefone de quem importa. O resto ali só ocupava espaço e me fazia sentir popular. Puxa, quanta gente eu conheço. Sabe, que nem aquele povo que tem mil amigos no orkut? Adiciona até o frentista que enche o tanque toda manhã atrasada de segunda-feira. Quanta gente eu conheço... Posso contar nos dedos de uma mão com quantas eu já tive conversas significantes e quantas delas só querem se fazer gente em uma conversa. Não ligam pro que você é, nem pro que tem a dizer, suas dúvidas, angústias. Eu tenho que ficar lá fingindo interesse na vida delas. Pra não ser desagradável. Só estão preocupadas em contar e contar e contar . Eu, eu, eu! E quando conseguem de você o que querem, o celular nunca mais toca. Então apaguei. Apaguei logo a agenda toda. De A a Z pra não cair na tolice de mensagenzinhas ébrias de fins de noite. Daquelas que você, quando acorda, pergunta se sonhou ou aconteceu mesmo. E sempre aconteceu. Você não sonha que está beijando o seu amigo que não sai do seu pé e vive implorando por uma noite ao seu lado. O coitado se humilha tanto como você no momento das mensagenzinhas. Humilhante. Nunca retornam. O objetivo foi cumprido. E você pára. Mas também só dura uma semana. Até você beber de novo e acordar pensando se o vômito e o tapa na cara de um fulano de quem você está com raiva eram reais. Eram? Fala que dessa vez não, por favor. É lógico que eram! Tem vômito na sua bota! O dia amanhece amargo. E uma vontade de ficar sozinha acompanha a cara péssima borrada com rímel. E por que eu não fico? Por que não tranco a porta do quarto e coloco um samba bem melancólico e deixo a tristeza vazar? Marcando um caminho negro em meu rosto. Caindo. Caindo. Caindo... Por que eu não vou ao cinema ver um filme que acabe comigo? Mais um pouco. Só pra saber que existem pessoas em piores situações - mesmo que de mentirinha. Por que não vou pra uma igreja rezar? É. Confessar. Entrar naquela cabine, inventar um monte de pecado e colocar a dor - única verdade - no meio deles. Quantas Ave Marias são necessárias para que se perdoe um amor? Deus perdoa a força de um sentimento que deveria ter morrido há tanto tempo? Se eu acendesse treze velas de sete dias e pedisse para esse encosto não me tocar delicado nem olhar para dentro de mim - sua vaidade sugando meu coração - eu estaria livre? Não fui ao show. Quer saber? Eu ia. Ia sim. Eu pensei que estar muda incentivasse conversas. Mas não. Ninguém falou comigo. Ninguém me falou nada. No show eu não precisaria falar. Só dançar e quem sabe receber um beijo pra calar a minha mudez. Depois de um beijo não há como não sorrir alguma coisa. E o sorriso é voz. O sorriso depois de um beijo é a voz de uma felicidadezinha. O sorriso diz obrigada à pessoa e cochicha no seu ouvido tá vendo? u still rock girl! - mesmo que depois a insegurança agarre suas orelhas e grite é só uma noite! e você diz que anota o telefone dele. Mentira. E se convence é só uma noite... Tem quem me queira só por uma noite. A maioria quer. A maioria quer todo mundo só por uma noite. Não "pelo menos" por uma noite. "Só" por uma noite. E então a dúvida: render-se ao jogo ou não se trair? Eu juro que queria enxergar esse assunto com mais leveza. Claro que eu juro. Você não acredita em mim? Pois é, eu sei. Não consigo. Deus me perdoa? O Deus de hoje eu tô falando. Esse aí que usa internet e aceita divórcio e camisinha. Ele perdoa esse meu sentimento que persiste? O fato de eu não ter amores efêmeros? Ele fala de amor próprio? Você sabia que eu acho ridícula essa história de amor próprio? Sabia, né? Eu tô ficando repetitiva, eu sei. Mas não dá pra exigir amor próprio no meio de uma paixão. A pessoa não sabe nem distinguir quando tá sendo inconveniente, imagine ter noção de amor próprio. Parece expressão de auto-ajuda, né? E por que Deus não libera mais algumas coisinhas pra gente? Tipo aquele mandamento de Não Matarás o Próximo. Quando a coisa deixa de existir a gente vai esquecendo. Esquecendo. Esquecendo... Eu não lembro mais da melhor amiga da oitava série. Tão importante. Não, ela não morreu. Mudou com a família pro interior de Goiás. A gente se correspondeu por cartas algumas vezes. Depois foi ficando chato. Ela não fazia mais parte da minha vida. Pra que contar coisas pra estranhos? Foi o que pensei em fazer hoje. Uma espécie de redenção? Mas a pessoa tem de ser estranha a você mesmo. Daquelas que você encontra na rua e despeja todos os problemas, como fazem os ex-habitantes egocêntricos da agenda do seu celular, que não te escutam. Um dia eu fiz isso, sabia? Eu tava triste. E todo mundo começou a perceber. Achei melhor sair de perto e fui pra dentro do carro. Eu tinha visto esse cara de longe, me deu passagem quando passei esmurrando o chão com o meu tênis. Ele continuou me olhando no carro. Que paciente, pensei. Ou psicopata? Depois de desabafar tudo o que eu tinha pra minha solidão, arrumei o cabelo e fui pra rua de novo. E não é que o rapaz veio conversar comigo? Num papo de que nunca traiu a namorada. O que será que ele tava querendo, heim? Como passei a odiar gente que apela pro perfil de bom moço, levantei e deixei ele lá falando de casamento e filhos. Mas antes fiz ele ouvir o motivo do minha decepção. Um massacre! Gente ingênua merece um pouco de zombaria. Te juro. Ficou sentado na sarjeta com ar de bobo. Eu falo, essa minha carinha de boazinha confunde mesmo. Mas eu gosto, sabia? No fundo devo gostar. É dúbio. Ninguém sabe o que você pensa. Até você se apaixonar - e ainda bem que isso é raro - e perder o controle de tudo. Nossa, como tá tarde. Acho que agora me deu sono e quero desligar. Oi? Se eu apaguei seu telefone? Sim. Te disse que apaguei de todo mundo. É que eu tinha anotado a caneta em algum lugar. No envelope da minha conta de celular. Veio alta. É isso mesmo. Você é do grupo que eu não sei o número. Daqueles que só sabem falar de si mesmos. Já me sinto vingada. Obrigada. Boa noite.

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