quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

APAGÃO



De estômago vazio, bebeu uísque, champanhe, caipirinha e um gole de Red Bull. Desembestou a falar com todo mundo na boate.

Deu sorte de encontrá-lo. Usava camisa. Conversaram a noite inteira sobre música, cinema indie e a Chapada dos Veadeiros.

No dia seguinte, ela teve dor de cabeça. Ele, boas lembranças. Tão boas que ficou com medo de ter anotado o celular errado.

“Quem é esse cara?”

Ela não se lembrava. Combinou um encontro às escuras.

Ele podia ser careca, barrigudo e zarolho. Podia ser grudento e falar cuspindo. Ele podia ser cheio de manias ou ser bobinho demais. Mas não era.

Um mês e meio depois, em uma tarde, tomando chá com a avó, teve de responder à pergunta:

- E aí, filha, já beijou?

“Claro! Beijei no primeiro dia!”

A avó jamais imaginou que as relações moderninhas de hoje em dia pudessem dar tão certo.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

UM GRANULADO



Um pão de mel depois, ela ficou mais feliz.
Você foi trocado por uma massaroca de farinha, ovos, fermento e Nescau recheada com doce de leite.
Fodam-se os quilos a mais.
O arrependimento veio em dez minutos.
Ela não precisava de tanto chocolate.
Porque nunca precisou tanto de você.
Um granulado bastaria para te substituir.
Então voltou atrás.
Foi ao banheiro, enfiou o dedo na garganta e tirou você da vida dela pra sempre.
Antes de dar a descarga, abriu o gloss e despejou o líquido em cima.
- Não se esqueça do meu gosto.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

NECESSIDADE DE ROMANCE

(Coluna para o site Guia da Semana)

 

Voltei insatisfeita do meu final de semana, que não foi preenchido com um único filme, ou mesmo um seriado. Pois é, perdi a reprise dos capítulos de “American Idol”. Choro com as histórias tristes e me arrepio com uma boa voz feminina. Esperar por “Grey’s Anatomy”, uma das séries mais românticas do momento, seria insano. Dez da noite, não mesmo! Eu queria naquele momento. Vou tentar esquecer aquele hospital e comprar a caixa com todos os episódios no final da temporada. Assim resolvo todos os meus problemas. É isso! Paro de assinar a TV a Cabo, assim me livro das (até) oito horas diárias em frente à televisão, conseqüentemente economizo os R$ 79,99, guardo no meu porquinho e no final do ano compro todas as temporadas dos futuros clássicos da TV Americana! Lorelai e Rory Gilmore estão na lista.

Fui me consolar no teatro. Precisava de emoção. A peça era infantil. Como tudo estava valendo, chorei logo que li o texto do programa. A peça era linda. Tinha romance! Mas era “criança” demais para os meus planos.

De repente um “insight”. Alguma voz ou a “Nanda” soprou no meu ouvido de onde vinha a minha repentina necessidade de romance. Por que me veio a vontade de escrever um texto com o título “Necessidade de Romance”. Tudo aconteceu de manhã quando ouvi as palavrinhas mágicas! Não, mamães, não é “por favor”, nem “obrigado”. É “Orlando Bloom”. Não é obsessão pelo ator. “Jennifer Aniston”, “Antes do Pôr-do-Sol” e “Débora Falabella” me despertam a mesma necessidade. Meu repertório de comédias românticas me denuncia a qualquer um. Sou fã! Não nego. Chega! Passei a vida inteira com vergonha de confessar que Sandy, a mocinha de Grease é a minha musa inspiradora.

Parecia abstinência: eu precisava de “Tudo Acontece em Elizabetown”. Só pensava na cena em que os dois passam horas no telefone. A Kirsten é demais. Eu quero usar top marrom e touca vermelha pra chegar um pouco mais perto do que é a Claire (personagem dela no filme, se você é uma mulher romântica, já sabe). Como se um figurino besta me tornasse uma pessoa rodeada de romance, com atitudes românticas. Quando cheguei na vídeo-locadora, um “alugado” era a última notícia que eu queria ouvir! Eu teria de ir pra casa sem a minha pitada de romance. Eu fui. Fazer o quê?

Por que será que eu precisava dessa superficialidade toda? Por que é que quando eu fuço a vida de uma pessoa que ama as flores, a família, a horta e um marido que lhe serve vinho tinto, depois de um dia pesado, todo esse amor parece tão mais intenso do que as coisas que eu vivo?

Size The Day! Carpe Diem! Talvez se eu respeitasse isso, o amor não faria falta. Eu não acordaria em minhas madrugadas para ligar a TV e assistir a alguma história espontânea de amor. Acho que eu quero viver aquilo, do mesmo jeito. Se eu pensar que a minha vida é uma trama tão romântica quanto todas as comédias e novelas e séries que acompanho, talvez eu parasse com essa coisa de “necessidade”. É que sou tão ansiosa, quero ver logo o final feliz da minha história.

Acabo me enganando o tempo inteiro lendo revistas de bem-estar, tentando seguir os passos à risca para ser feliz no amor, na carreira, para dar um passo ousado, para criar um ambiente harmonioso (sem feng shui, pelo amor de Deus) em que eu possa viver e trabalhar. Sinceramente nunca cumpri nada do que, um dia, concordei em fazer ao ler essas matérias. Eu mereço passar por essa necessidade! Vivo planejando o meu romance e o resto da minha vida. E tudo fica só nos planos. Quando paro pra pensar na minha música, na nossa, descubro que não tenho. Quando quero te presentear, erro, não presto mais atenção em ninguém que não possa receber um Oscar ou Emmy um dia. Quando quero rever as fotos das pessoas e lugares que um dia conheci, não vejo, pois tive preguiça de bater.

Enquanto isso eu desprezo o meu tempo e tudo o que eu poderia fazer de diferente agora e projeto a minha felicidade nos romances dos outros, como se fossem meus.

 

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

À ESPERA DA BRAZOCA DE GENALVA

(Texto que concorre no Concurso Literário de novembro da Revista Piauí)

http://www.revistapiaui.com.br/2007/nov/concurso_p.htm#p

 

    "Genalva, vem me buscar que eu estou odiando." Desligou o celular pré-pago e limpou o visor na jaqueta. Joana não era dada a festas de família. A tia perguntando quando iria se casar. A avó vagando pelo salão escondendo bolachas Maizena nos bolsos do penhoir. A mãe, Dona Edi, escancarando a vida dela para quem quisesse ouvir. A solução, depois que completou dezoito, era se embriagar com latinhas de cerveja Cintra. Ainda por cima não entendiam nada de bebida! Mas a cerveja subia que era uma coisa! E tinham os risoles encomendados da padaria do bairro da Casa Verde. Odiava aquela massinha branca que ficava nos dentes sempre que mordia um. Recorria à torneira do banheiro unissex, limpava os dentes e voltava ao porre: bebida e festa.
    Enquanto Genalva não chegava, o primo arriscou uma conversa boba. Menos mal. Ela tinha mais paciência para pagode do que para as pitangas que a tia solteirona chorava depois do Parabéns Pra Você, seguido de Com Quem Será?. Assim resgatou da pré-adolescência Domingo do Só Pra Contrariar. O primo não se lembrou. “Cadê você, Genalva?” Abriu a quinta latinha e desejou que o barulhinho da pressão fosse mais longo. Deus! Como gostava daquele som! Recordou-se de Rony. Sempre que levava um fora dele, conhecia alguém interessante. No último, Genalva, que surgiu dizendo “Olá” e abrindo uma cerveja. Nada romântico, mas o jeito como ela consolou suas lágrimas minutos depois, faria até a mãe de Joana aceitar. Almoçariam com Dona Edi aos domingos.
    Ainda não avistava a Brasília de Genalva. Uma droga ser garçonete! Nem dinheiro para comprar uma Vespa e adquirir a liberdade de ir e vir! Poderia usar botas de couro, enquanto recebesse o vento das ruas de São Paulo no rosto! Ao estacionar em frente ao serviço, tiraria o capacete vermelho, balançaria o cabelo e acenderia um Marlboro Light. Fumaria até se encher. Ao fim, jogaria a bituca no chão e apagaria com o pé. Sim, ela tinha seus momentos femininos, apesar de odiar saias. Mas não tinha uma Vespa e dependia da Brazoca da Genalva. Uma ponta de inveja da esposa!
    Ouviu o barulho do motor típico dos carros dos anos 80. Joana disse “Tchau” sem olhar para ninguém e desceu as escadas em direção à rua. Antes de entrar no carro, a mãe saiu à porta. “Arranjem logo um namorado! O povo comenta!” Joana inspirou fundo todo o ar da Casa Verde e se sentou no banco cheio de pó. Genalva ligou o RoadStar na Nova Brasil FM. Tocava uma música da Ana Carolina. As duas sorriram e foram embora dublando Pra Terminar.

 

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

“SÓ TINHA DE SER COM VOCÊ”


Pularam de mãos dadas.
Sorriam enquanto despencavam.
O vento nos cabelos, nas bochechas.
Sorriam para as nuvens e o céu azul claro.
Tudo em câmera lenta.
Teve tempo de lhe perguntar por que riu. Ela disse que havia lembrado da franja dele, que cai na testa quando fica bêbado.
Ele devolveu a graça recordando que, quando bebe, ela não consegue falar inconstitucionalicimamente.
Antes que ela provasse ser capaz de pronunciar tal palavra, esborracharam-se no solo da Chapada Diamantina.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

UMA FESTA SEM CERVEJA

Ele conversava com dois amigos. Os três usavam verde. Só ele bebia Coca-Cola.
Ele conversava com dois amigos quando ela entrou na festa de azul, sorriso ansioso e olhos pintados.
O DJ tocava um samba triste. Não ficaria até tarde. Foi para espiar o movimento. Passou por trás dele de propósito. Passou reto.
Quando ele olhou para trás o cabelo vermelho dela já cruzava a porta de saída.
Não teve coragem de deixar o salão antes de ter a certeza de que ela não estaria do lado de fora. Nem na rua. Nem nos ares. Nem no seu caminho. Nem mesmo dentro do carro de outra pessoa, parado na frente do prédio dela.
Não teve coragem de olhar nos olhos de quem a acompanhava.
Chegando em casa, abriria a garrafa de vinho e quebraria o pacto com a melhor amiga de não encher a cara. Já embriagado pensaria nela e se controlaria mais uma vez para não discar o número do seu telefone. Sempre se contendo. Sempre disfarçando. Sempre fingindo que ela não importa.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

DECEPÇÃO 3

Quando mudaram de casa, Débora perguntou ao pai se poderia brincar nos cômodos pela última vez. O pai sorriu e concordou. O que ele não sabia é que ela queria dar estrelas no quarto vazio. Pela primeira vez ela teria espaço! Quando o pai foi buscá-la, para finalmente conhecer a nova casa, o novo quarto, o novo jardim, Débora estava sentada como uma indiazinha no centro do quarto e pronunciava “hummmm”. Aprendera isso com a vizinha, Arlete, que também tinha um salão de cabeleireiro na rua. Arlete adorava fazer “hummmm” quando o marido chegava em casa pedindo o jantar. O pai não entendeu nada e chamou “Débora!” Ela fingiu que não escutou e só saiu dali quando ouviu um barulhinho de papel de bombom. Essa infalível tática era usada por Norberto, segurança da Rua das Flores, ex-rua da família de Débora.

“Adeus quarto! Que a sua nova dona seja tão divertida quanto eu fui! Adeus Arlete, pare de cozinhar feijão, pois o Percival não gosta! Adeus, Norberto! Obrigada pelos bombons, mas agora você terá de comê-los!” E assim Débora se despediu da vida que vivera até aquele momento, segurou a mão do pai. Os dois saíram pela porta da frente, olharam para o sobrado azul pela última vez e, antes do pai dar a partida no carro, Débora voltou e se pendurou na alta janela do banheiro. “Não deixe ninguém dormir com você”, sussurrou. Saltou na grama, entrou no carro.

Foi quieta durante o caminho ao novo lar. O pai não entendeu, pois ela não se animou nem com as músicas do Guilherme Arantes. Débora gostava de cantar “Eu nem sonhava te amar desse jeito” e repetir “eu nem sonhava, sonhava, sonhava, desse jeito...”

DISCLAIMER:
Esta mensagem e qualquer arquivo nela contidos são confidenciais. (Artigo 56 da Lei n.º 4.117 de 27 de agosto de 1962, aplicável aos crimes em telecomunicações, nos termos do art. 215, I, da Lei 9.472/97).

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

EXPLICAÇÃO

Da próxima vez, pode ser traição, amigo malandro, briga no meio da avenida. Da próxima vez, pode ser a sua mãe ciumenta ou uma irmã que te idolatra. Pode ser a sua carência pegajosa. Pode ser a minha insegurança sem fundamento. Podem ser seus olhos procurando outras mulheres, enquanto você está ao meu lado. Pode ser a minha insegurança com fundamento. Pode ser um traje de banho esquisito, no nosso primeiro final de semana de sol. Que não seja. Pode ser o jeito como você diz legal e aquela palavrinha que você usa quando está irritado e que eu não quero repetir aqui, para que você não descubra o quanto me envergonha. Pode ser a sua imaturidade. Pode ser a sua cobrança para que eu seja responsável. Pode ser você me acordando cedo. Pode ser o seu descaso, mas espero que não seja. Pode ser o meu ex, a sua. Podem ser muitos outros olhos te procurando enquanto você está ao meu lado. Podem ser os seus erros de ortografia. Pode ser a sua carteira vazia. Pode ser uma ligação no meio da madrugada. Pode ser a sua beleza desmedida. Pode ser a desaprovação do meu melhor amigo, mas também o meu medo de te assumir. Pode ser instabilidade, inexperiência, insatisfação ou outras opções. Pode ser um novo emprego. Pode ser também que você não me ligue amanhã. Pode ser.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

CASA NOTURNA PARA DOIS

(texto que entraria em CIAO*)

 

Você chegava às vinte e três horas e quarenta e cinco minutos. Tirava os sapatos e os deixava ao lado da porta de entrada, embaixo do interruptor de luz. Andava até a sala e desligava a TV. Eu dormia enquanto te esperava. O sono me vencia. Tenho certeza de que você me olhava e se irritava por eu ter adormecido no sofá mais uma vez. Sem me acordar, ia para o banheiro abria a gaveta e pegava todas as caixinhas de remédio. Eu procurava deixá-las vazias e sempre quis estar ao seu lado quando você as fosse abrir. Ficava tão bonito irritado. É que aquela ruguinha entre as sobrancelhas se formava e te deixava mais maduro. Você ficaria lindo mais maduro. Ia para o banheiro abria a gaveta e pegava todas as caixinhas de remédio. Eu procurava deixá-las vazias, mas não era sempre que me lembrava ou queria. E como se fosse uma criança gulosa diante de balas de todos os sabores você abria os potinhos e jogava dentro da sua caneca de fazer gargarejo depois de escovar os dentes. As suas balinhas tinham tamanhos, formas e cores diferentes. Você gostava mais daquelas com duas cores e por isso colocava maior quantidade delas. Jogava dentro da sua caneca de fazer gargarejo depois de escovar os dentes e bebia. E assim você morria mais uma noite.

            Eu acordava à zero hora e dez minutos. Olhava para a porta de entrada e via o seu sapato debaixo do interruptor de luz. Desesperado, corria até o quarto e te encontrava desmaiado. Era quando eu podia te observar sem que isso te incomodasse do jeito que te incomodava ultimamente. Sem que você metesse a mão na minha cara. Sem que você me proibisse de sentir alguma coisa e sem deixar que o seu ódio por mim transparecesse e a sua vontade de me mandar embora te tomasse. Eu costumava me trocar e te levar ao pronto-socorro. Você acordava e tudo voltava ao normal: a sua frieza, indiferença, raiva, impaciência. Por isso naquele dia, resolvi mudar a nossa rotina. Eu poderia acabar de vez com o seu sofrimento. Não com o meu. Mas não me importava. Eu também era infeliz, mas não tinha alguém que me amasse como eu te amava. Não tinha alguém que quisesse acabar com o meu sofrimento. Por isso peguei o travesseiro e coloquei sobre o seu rosto desacordado. Fui para o banheiro e abri a gaveta das caixinhas de remédio, lá também estava ela. Eu procurava deixá-la vazia, mas não era sempre que me lembrava ou queria. Voltei ao quarto. Você com um travesseiro na cara. Atirei uma, atirei duas, atirei três vezes. Aliviado, voltei à sala, deitei no sofá e liguei a TV. Mas estar ali não fazia mais sentido. Voltei ao quarto. Você com um travesseiro ensangüentado na cara. Eu me deitei na cama e dormi ao seu lado, pela primeira vez depois de tantas noites.

*CIAO – Estréia: 06 de outubro – Instituto Cultural Capobianco – Outubro - Sábados e Domingos – 21h

terça-feira, 21 de agosto de 2007

A DANÇA

Andavam no canteiro central da avenida quando ele a convidou para um dança. Dançaram lá mesmo, debaixo da placa de retorno. Ela interrompeu:
- Pare.
- O que foi?
- Não me desça.
- Eu não vou te soltar.
- Não quero fazer este passo.
- Confie em mim.
- Você pode me largar...
- Eu não quero.
- Preciso dos meus pés no chão. Me solte!
- Tem certeza?
- Não quero ir tão longe com esta dança.
Afastaram-se e atravessaram a rua, sem comentar o episódio. Despediram-se sem saber que aquela seria a última vez.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

VAI PASSAR

Quando acordei você ainda estava lá. Eu não queria. Não te expulsei, porque quis olhar para você. É o meu segredo. É sempre bom olhar para você. Eu consigo, durante um dia inteiro, sem enjoar. Porque você não passa.

Enquanto a água quente do chuveiro escorria, você me observava através do vidro do box embaçado. Vá embora ou fique de uma vez!

Quis me levar até o carro. Não é preciso simular um romance. Na porta, um ímpeto: entrou e me acompanhou até o trabalho. Passe, por favor.

Quando chegamos, continuou ao meu lado. Tentei trabalhar, mas você me distrai. Todos me pegam olhando para o vazio e não têm mais dúvidas sobre você. Nego. Como sempre. Não deixo você existir para ninguém. Também não pronuncio o seu nome. Soaria real.

..............................................................

Depois do café você passou. Depois do café você não fazia mais sentido. Vá embora, por favor. Não volte, a menos que eu me permita dizer que gosto de olhar para você.

terça-feira, 24 de julho de 2007

RECOMENDAÇÕES

Eu, deitada, serena, de olhos fechados e margaridas cobrindo o meu corpo do quadril até os pés. Obrigada, mãe. Era exatamente essa flor que comporia o meu buquê de casamento. Você preferia as rosas vermelhas, a tia também, mas gosto da beleza simples da dessa florzinha pequena e branca como eu. A família veio em peso. Achei que não gostassem de mim. Ou ficava quieta em algum canto da sala ou alfinetando o comportamento cafona de alguém ou me controlando para não pensar nisso ou duvidando que não haja um micareteiro na família da Fernanda Torres. A realidade: estavam ali por causa da minha mãe. Depressiva, apegada, frágil, dependente, dramática. Sou vaidosa e não aprovo a foto que está em cima da mesa. Poxa, mãe! Chegou uma coroa de flores. “Saudades. Amigos do Trabalho”. Onde estão que não vieram? Deletem o meu perfil no orkut! Pai você tem a senha. Não quero saber de mensagens para uma defunta. É esquisito. Nada de você vai fazer falta, te amamos para sempre, você foi única, não existirá melhor amiga, sua alegria ficará em nossas memórias. Não estarei mais aqui para ler nada. E juro que se for possível, volto e puxo o pé desses atrevidos. Um por um. Durante as madrugadas frias e sombrias de julho. É um desrespeito. É cômodo. Gostam de mim? Visitem-me no “Chora Menino”, estarei ao lado do limoeiro, onde se pode ver o pôr-do-sol mais bonito no verão de São Paulo. Tratem de não me esquecer ao longo dos anos. Quero figurar nos assuntos das festas de aniversários, nas fotos dos vídeos de casamentos, nas mesas das happy hours, na tela de proteção do computador, na lágrima e no soluço quando ele se tranca no quarto para chorar por mim sem que ninguém saiba. Quero todas as nossas cartas dentro de uma caixa especial colocada em um lugar de destaque na sua sala e que a sua mãe se emocione sempre que vocês se  lembrarem de mim.

Deixem meus livros para a Joana, o carro para o meu irmão, minha cortinha de fuxicos para a Lila. Devolvam a coleção do Cartola para o Beto. Se quiser e tiver coragem, ela pode ficar com as minhas roupas. Registrem os meus textos, vai que. Atendam o meu celular e anotem o e-mail das pessoas (eu escrevi  uma mensagem especial para os meus amigos atrasados). Não doem a Algodão para ninguém, por favor. Pintem a parede do meu quarto de vermelho e chamem a Ale para ver como ficou.

Fui embora e não realizei nada. Não era a minha hora. Nunca é. Quando ele se foi ainda sonhava tanto, ainda planejava voltar ao Brasil e morar nas serras gaúchas, fazer uma horta e cuidar de coelhos. Eu ainda queria uma vista para a lua, o marido de calça de pijama e as nossas tardes cheirando a manjericão e doces de Cora Coralina.

 

segunda-feira, 23 de julho de 2007

VENTO QUENTE

- Esse vento quente é gostoso.
Enquanto, juntos, esperavam a amiga se despedir de todos, ficaram quietos.
Fale alguma coisa, ela pensou.
Ele não falou.
Então faça qualquer bobagem.
Ninguém fez.
Ela olhava para a parede.
Ele, para o céu.
- Esse vento quente traz chuva. Gosto da chuva que vem depois destes vinte e cinco graus.
Ele pensou em fazer graça e não fez, porque se sentiria imbecil.
Ela pensou que ele poderia fazer uma gracinha imbecil qualquer.
Continuaram a pensar demais.
Ela enrolava o dedo no cabelo comprido, de maneira repetitiva.
Ele, com as mãos nos bolsos, continuava olhando o céu.
A amiga chegou e a levou embora. 
Não teve coragem de olhá-lo nos olhos ao se despedir e ele não teve vontade.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

DEIXE-ME OLHAR PARA ESTA PAREDE ANTES

     Deixe-me olhar para esta parede antes que você entregue a chave. O que você vai fazer com a caixa de sapatos onde guardávamos as fotos? Se for queimá-la, reconsidere. Posso ficar com todos os álbuns. Não entendo porque a cama vai para a sua irmã. Eu não quero a geladeira, mas fico com o microondas que decorei com adesivos modernos. Vou tirar só as letrinhas do seu nome. As que estavam em azul, porque você gosta de azul. Posso levar o escorredor de macarrão? É seu, mas você odeia massa e eu não vivo sem espaguete. Troco pelo cinzeiro roubado no Amarelinho. Vamos dar a tinta branca que sobrou da reforma para o porteiro? Também quero me desfazer do nosso edredon. Acho melhor você também não levar. Olhe esta sala, quase comprei um tapete na semana passada. Quase. Ainda bem que não. Era listrado de azul e branco. Porque você gosta de azul. O que vai ser do seu escritório? Lá não tem espaço. Vamos ter de dividir as plantas. Você comprou, mas eu cuidei. Fique com as grandes. Eu me responsabilizo pelos temperos. É melhor limpar o chão. Você acredita que ainda tem cerveja da festa da semana passada? Ninguém vai esquecer das nossas festas. Nem os vizinhos. Falando nisso, preciso devolver a panela da senhorinha do quarenta e um. Tão simpática, mas não gostava de você. Agora é hora de ir. Quero, pela última vez, ver da varanda tudo o que via pelas manhãs. O gato preto na janela balançando o rabinho, a mulher velha varrendo o chão da rua de chinelo e meia grossa, os passarinhos conversando nos galhos das árvores, meu carro estacionado, o seu. Para sempre vou lembrar do cheiro do café com leite e do pastel que você trazia da feira aos domingos, mesmo sabendo que eu não comia nada oleoso. Deixe-me olhar para esta parede antes que você entregue a chave. Eu gosto da cor dela. Você também. Leve a chave e fique com o meu chaveiro, por favor, que eu fico com o seu.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

MÚSICA DE BORDEL

Depois de tantos anos, ainda olho para o espelho e, ajeitando meus poucos fios de cabelos brancos, cantarolo a música que você me mostrou naquela noite. Confesso que das minhas farras nos bordéis de Toledo das Campanhas apenas aquela tem capítulo exclusivo na minha vida. As outras resolvi em uma curta crônica, publicada há doze anos no jornal do meu bairro. Quando você me levou ao seu quarto, esperava que, ao trancar a porta, arrancasse a sua roupa. De maneira feroz, porém feminina. Não é o que vocês todas fazem? A inexperiência e o nervosismo fizeram você desencapar o violão. Você tinha uma voz limpa e suave. As últimas sílabas de cada palavra cantada produziam um som nasal gracioso. É esse som que me faz parar de mexer no cabelo para sorrir curto e distraído. Além da melodia, que não me saiu da cabeça. Uma letra que não consigo dizer. Contava a nossa breve história. Que história? Não voltei a lhe procurar. Você foi de tantos antes e depois de mim. A inexperiência e o nervosismo me fizeram nunca mais aparecer. Você também não abandonou a sua vida para bater na minha porta numa madrugada qualquer, chorando, de maquiagem borrada. Poderíamos ter sido. Focando os meus pés-de-galinha, pensei em lhe procurar. Publicar uma loucura nos jornais nos quais tenho contatos, poucos. Sou velho, hoje, e não tenho mais frescuras. Se quero usar chapéu de policial, uso. Uso e fico bem apanhado. Você cantaria pra mim?

quarta-feira, 13 de junho de 2007

PAIXÃO CAFÉ

     João, 32 anos, nordestino, maduro e carente. Desses que não são capazes de controlar a velocidade das batidas de próprio coração. Não conseguia dormir. Estava debaixo do edredon verde há uma hora com aquela taquicardia. De olhos fechados, procurando a melhor posição para se entregar ao sono. Resolveu apontar a barriga para o teto e levou os braços cruzados para a parte de trás da cabeça. Respirou um “dane-se” e levantou-se. Ao acender a luz, a claridade não o incomodou, pois a ansiedade pedia maior atenção. Foi direto à gaveta do meio da penteadeira da mãe, falecida. Pegou um envelope lilás, aberto, e tirou dele um papel arrancado de um caderno universitário. Palavras escritas a caneta bic azul. Se alguém pudesse vê-lo naquele momento o acharia bobo. Não é assim que definimos um homem que se rende a uma fantasia romântica? Alimentado de uma felicidadezinha efêmera, dobrou o papel pela terceira vez na mesma noite e o enfiou dentro do envelope, devolvendo-o à gaveta. Apagou a luz e no meio daquele silêncio, pôde ouvir o coração ainda mais acelerado. Deitou-se com um sorriso carimbado e tentou, outra vez, dormir. Em vão.  

quinta-feira, 24 de maio de 2007

PREGUIÇA II

Uma vontade de voltar às seis da manhã, quando estava frio e garoava. Ao abrir meus olhos, pude fechá-los imediatamente, porque o edredon estava macio, cheiroso e quentinho. De repente o miado da gatinha do outro lado da porta, trancada. Ela poderia se deitar perto de mim. Ouviria o seu ronronar e seu corpinho me aqueceria mais.
Uma preguiça às seis da manhã. Ainda bem, eu pensava, ainda bem que posso dormir mais três horas hoje. Ainda bem que existe rodízio de carros para manhãs como essa, típicas de São Paulo.

terça-feira, 22 de maio de 2007

porque

porque você não combina comigo. porque você nem é tão bonita assim. e seu humor é esquisito. sinceramente não vejo a mínima graça nele. porque você odeia criança e me mandou comprar um peixe em vez de ter filhos. porque você abomina drogas naturais. mas sugeriu que tomássemos bala naquela rave. principalmente porque odeio raves. porque ainda gosto dela. que não é tão decidida quanto você. nem tão esperta quanto você. também não fala doce como você. mas ela é mais presente do que você. porque, de vez em quando, não sinto vontade de te ver. porque você me proibiu de pagar a conta e porque odeio proibições. porque você me dá medo. porque acabei de sair de um relacionamento e não quero me envolver com ninguém. porque o seu perfume me faz lembrar da minha avó. porque você é para sair e comer uma pizza. porque você não sustenta uma conversa por mais de uma hora. porque minha mãe não gostaria de você. porque você não me faz pensar em nada. embora seus olhos azuis me entretenham durante alguns segundos. porque estou conhecendo muita gente. porque tenho que ir com calma. porque você não é pra mim. mas você é pra alguém. só não pra mim. porque consigo achar tantos porquês.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

O CHEIRO DE CIGARRO NO DIA SEGUINTE

     De repente acordou. Um vazio. Ela não estava ali. Há tempo demais. Sensação ruim acordar cheirando a cigarro e bebida sozinha. Decidiu voltar a dormir. E assim foi até o dia seguinte. Os sonhos não lhe tiraram a sensação de podridão. Voltava a ser mais uma mulher comum. Mais uma mulher que não tinha para onde voltar. Para quem. Detestou a solidão. Detestou a independência. Detestou o “quero dançar com outro par para variar, amor”. Detestou, durante todo o final de semana.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

MINHA VIDA COM A VIZINHA

Cinco anos de casamento e Rita não lhe rendera mais de sete contos. O que era um problema. Estava endividado e um livro de amor lhe traria bons trocados. Só conseguia pensar naquela puta gastando a pensão em bijuterias de mau gosto e cachorros-quentes para as crianças.  Sempre teve dedo podre para mulher, mas uma história sobre um homem abandonado e assaltado pela mãe baranga de seus filhos - porque foi exatamente o que aconteceu – seria como chorar no ombro da melhor amiga. Apesar de escritor, não se permitia a essas sensibilidades diante das situações intensas da vida. Parecia um homem frio, mas falava com o olhar. Uma frieza misteriosa. Arranjar outra mulher não seria difícil. Falava em ter filhos e casamento a qualquer uma com quem saía por mais de três vezes. Ele adorava esse tipo que sonha com a família de comercial de manteiga. E tinha Cristiana, a vizinha gostosa de óculos. Ele sempre notou os olhares dela, lançados dentro do elevador. Cristiana era uma ótima opção: inteligente, alta e morena, porque de loira não queria mais saber, elas vão embora e levam as crianças e o seu dinheiro. Além de tudo, Cris – ou Tina? Qual seria o apelidinho carinhoso que lhe daria? - morava no apartamento ao lado, talvez não quisesse se mudar para o dele quando o relacionamento ficasse sério. Teria a casa livre para sempre. Poderia chegar, jogar a pasta no chão, tirar os sapatos e deixar as meias pelo sofá. Ligaria a televisão no canal de esportes e abriria uma lata de cerveja. Beberia, no mínimo, cinco e deixaria o restinho quente, desejando que a fábrica produzisse latinhas de 150 ml. Aquela vizinha lhe inspirava histórias, quem sabe adotaria um estilo diferente. Tragicomédia ou uma novela dessas bem românticas e arrastadas. Resolveu que no final de semana desceria à piscina para cortejá-la. Adorava essa palavra e tinha certeza de que as mulheres achavam uma graça. No meio do planejamento de seu futuro ao lado da vizinha, a campainha tocou. Era Cristiana. Sem o que dizer, ele apenas olhou daquele jeito que convence qualquer mulher a qualquer coisa. Cristiana também não disse nada. Ficaram assim por alguns segundos, até que ele, ofendido, porque ela usava as mesmas armas, cortou o silêncio. “Oi”. Também não era bom com frases longas, achava que não escondiam nada e esconder era o melhor do jogo. A vizinha corou tensa, uma veia lhe saltou bem no meio da testa. Ela olhou nos olhos dele, seguros, convictos da vitória. Deixou um bilhete e foi embora. Bateu a porta tão forte que o prédio vibrou. Ao ler o recado, ele se achou um quarentão bobo. De amores fracassados por ser bobo. Envergonhou-se até do jeito como se vestia e paquerava.
Cristiana pedia para que ele parasse de espiá-la pela janela.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

UM FRIO NAQUELE PONTO DE ÔNIBUS!



Fazia frio no ponto de ônibus naquela noite. Nada pra olhar, ler ou tomar. Olhei o relógio. Nove horas. Lembrei de você. Era o seu horário, o seu ponto. Você me emprestava aquele casaco preto antes que meus dentes começassem a bater.
Do outro lado da rua, homens bêbados no balcão de uma padaria falavam alto. Ao menos, me distraíam.
Quando o ônibus chegou, fiz sinal e ele parou. Com o pé no degrau e na mira dos olhos cansados do motorista, recuei. Uma esperança de te ver pela última vez. Mais uma vez, você me fazia passar frio.
O que eu diria se você aparecesse? Talvez atravessasse a rua para me esconder no meio dos homens e da cerveja. Talvez fosse melhor eu me preparar com uma dose de qualquer coisa com mais de 50% de teor  alcoolicoantes de você chegar. Por sorte era noite e não repararia na minha bochecha vermelha, que fica assim só quando eu vejo você, depois daquele dia.
“Filho da Puta! Traidor” - alguém gritou do outro lado da rua. Não era preciso olhar para saber que vinha da padaria. Lembrei de você e me arrependi de não ter tomado aquele ônibus barulhento. Senti vergonha do que fiz. Fiquei quente. Eu pegaria o próximo. Rezei para você não aparecer. O ônibus demorou. Atrasado. Como sempre. Como você.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

EU DECIDO.


Ele dança conforme a música, mas só se mexe quando conduzido. É meio feminino, mas agrada.
Não há o que definir. O meu romantismo simpatiza com a idéia de que ele esteja petrificado de medo. É mais interessante assim.
Pode ser indiferença. Deve ser.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

!


Já não somos mais jovens. Há pouco tempo me dei conta. Somos lentos para atravessar as ruas na faixa de pedestres. Os faróis de hoje abrem depressa demais. Você segura a minha mão? Vamos.
Ouvi, dia desses, uma menina dizer que somos chatos quando falamos demais do nosso passado. Deveríamos ser enfeites? Bibelôs que cozinham aos domingos para a família e ficam sentadinhos e quietos na hora do cafezinho? Não sou nenhum bichinho de estimação, viu. Sempre conversei. Sentava com as meninas e falávamos de tudo. Elas tinham tempo e vontade de ouvir o que eu precisava contar. Eu fazia o mesmo.
Acham-nos entediantes por sermos lúcidos. Que preferem? Um derrame, uma cadeira de rodas, alzheimer? Estão acostumados a sentir pena de nós. Não quero. Sempre trabalhei e paguei as minhas contas. Lembra de quando ganhei aquele prêmio? Também jogava vôlei. Jogava bem o vôlei.
Era bonita, você se lembra? Claro que sim. Meus cabelos brilhavam, todos pediam o nome do meu xampu. Dançava. Eu rodopiava. Aquelas saias modernas. Eu adorava girar. Não caía e não ficava tonta. E agora querem me deixar sentada na cadeira com um vestidinho florido e sorriso estampado.
Fomos tantas coisas. Não vou deixar que ninguém me faça esquecer. Você me escolheu. Não foi por falta de opção, foi? Eu era especial, não era? Então por que ela falou aquilo?

quarta-feira, 18 de abril de 2007

VOCÊ NÃO TROCA



Eu troco meus dias livres por dias livres com você. E troco aquela noitada por filme em casa. Eu troco todos os telefonemas às amigas por uma ligação para você. Eu troco, não tem problema. E troco duas rádios memorizadas no som do meu carro por duas de sua preferência. Eu troco a minha reunião por um almoço com a sua mãe. Eu troco a minha timidez por mãos dadas. Eu troco Nova Iorque pela Baleia, se você quiser. Você quer? Eu troco minha frieza por olhos encantados. Eu troco meu sono por um bate-volta. E olha que não troco meu sono por nada. Também não faço bate-voltas por nada. Eu troco meu estado civil. Eu troco alguns planos meus pelos seus.
...........................................................................................
Eu troco o aniversário da minha melhor amiga pelo seu cansaço. Eu troco a sua companhia pela solidão. Eu troco a minha família por um dia com você. Eu troco o meu esporte pelo seu. Eu troco a minha casa pela sua. Eu troco um romance por um filme de ação. Mas só essa semana. Na próxima, você troca.
...........................................................................................
Destroco a sua vida pela minha.

terça-feira, 17 de abril de 2007

A GATA E O CAFÉ


Era uma gatinha muito particular. Chegava a casa da dona pela manhã, após longos passeios pelos bueiros da cidade. Já não era mais branquinha. O tom cinza de poeira cobria seus pelos curtos. Seu reloginho biológico avisava as oito horas da manhã, então ela aparecia pela entrada dos fundos da casa. Miando. Miava. Localizava o rosto moreno da dona, sempre à mesa da copa, que se levantava e servia-lhe a ração de salmão & atum na tigela verde. Na vermelha, água.
A dona da gata voltava ao seu café da manhã. Manteiga, pão francês, banana, leite e café. O cheirinho gostoso do café. Toda manhã ele visitava a cozinha da casa de pé-direito baixinho, baixinho. Saía da cafeteira italiana, que chiava logo que a água fervia. Chi chi. Chegava ao nariz grande da dona. Que cheirinho bom. Atravessava a porta da cozinha, rumo à lavanderia. Passeava pelas roupas ainda molhadas e dava bom dia ao sol. Era quando a gatinha acordava. Ela, que dormia no telhado em cima da máquina de lavar roupas, toda as noites, sem conhecimento da mulher morena, despertava assim que o cheirinho do café recém-passado entrava no seu nariz geladinho e molhado.
Terminada a refeição, gata e dona sentiam a barriga cheia. Uma moleza. A gata entrava na cozinha novamente, muda, e olhava a humana com seus olhinhos amarelos. A mulher pegava uma xícara de plástico e preenchia com o café cheiroso. Levava ao chão. E assim a gata bebia todo o líquido pretinho e gostoso. Não dormia o dia inteiro. Depois da última gota, as duas, cúmplices, se olhavam de novo. A dona recebia um “miaubrigada” da bichana, que partia. Não havia desespero, nem preocupação por parte da mulher. A gatinha voltaria no dia seguinte, às oito em ponto, assim que sentisse aquele cheirinho.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

OURO PRETO


Decidiu fazer aquilo, que há muito tempo desejava. Fechou o apartamento alugado na Vila Romana. Pediu mais um mês à proprietária, assim a mãe poderia vender todos os móveis que um dia comprara, cheia de planos. Decidiu levar apenas o DVD e a vitrola. Os discos chegariam depois. Não gostava mais da geladeira, das cadeiras do fogão. Até a mesa de centro era a cara dele.
Decidiu fazer aquilo, que há muito tempo desejava, em abril. Estava um friozinho bom, mas o céu, aberto. Lembrou da época na Toscana, em que um casaco, ao sair de casa, era preciso.
Foi de carro, com medo. Era a primeira vez que se aventurava numa estrada. Sua estréia não poderia ser pior. Buracos e mãos duplas definitivamente a deixavam estressada.
Ouro Preto era logo ali depois de Belo Horizonte, depois da serrinha. Já podia sentir o cheiro gelado das montanhas. Sensação boa. Sempre a fazia sorrir. Pensava nas ruas de paralelepípedos e nos restaurantes charmosos. Recordações. Queria apagar ele daquela cidade. Era impossível. Estivera lá sempre em sua companhia. Passeavam por cada igreja e por cada lojinha de mãos dadas. Torceu para que não levasse o ano inteiro, que passaria ali, para se esquecer.
Na cidade mineira ficaria em paz. Adorava a idéia de ser vista como forasteira. Uma pena não poder chegar num conversível com óculos de sol grande e lenço no pescoço. Uma pena também não poder chegar de escarpin, afundaria o salto no vão entre os paralelepípedos, assim que descesse do carro. Perderia a pose. A curiosidade que causaria nos moradores daria lugar a piadinhas ditas pelas costas. Por isso resolveu ser mais moderna e chegar de All Star, era alta e podia se dar ao luxo de calçar tênis.
Uma vida diferente era o que esperava. Um pouco de solidão pelas manhãs, um banho morno no banheiro de vitrais. Depois o som dos teclados, tac tac tac, escrevendo histórias. O cheiro dos seus temperos na hora do almoço e o prazer em fazer tudo na panela de ferro. Temperos também se pareciam com ele. Escolhiam juntos em lojas especializadas. Tentaria transformar tudo em passado nas noites charmosas subindo e descendo escadarias e ruas, entrando como intrusa nas festas das repúblicas. Homens bebendo cerveja e olhando as meninas. Haveria de ter um gato pingado por lá, assim como ela. Poderia transformá-lo em sua nova dificuldade, em seu novo passatempo, na sua saudade.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

HOJE NÃO.



“Hoje não. Amanhã”. Ela sabia que uma hora passaria por isso. Já não se sentia mais bem-vinda na vida dele.
Por que "hoje não"? Tem alguém aí? Está ausente? Fazendo faxina?
Se hoje não, amanhã também não. Nunca mais.
Humilhação é pensar que seria capaz de passar na frente da casa daquela fulana para descobrir se o carro dele estaria por lá. Como gostava de um pouco de drama na vida, desejou se deparar com esse desgosto. Ainda bem que não estava. Foi melhor. Ela jura que arrebentaria a porta e o expulsaria dali a tapas! Sem-vergonha. Sua cama mal esfriou.
Resolveu ir para casa. Na ponte, pela primeira vez, sentiu vontade de chorar. Chorou de raiva. Por que ele mentiria? Ela não merecia. Sempre foi tão sincera, já confessou até não amá-lo.
Agora ela só queria que “amanhã” chegasse logo para recusá-lo, assim ele sentiria o mesmo gosto do choro salgado da ponte. Na esquina de casa, limpou o rosto na manga do casaco para que a irmã não percebesse nada. Limpou o pé no tapete, deu boa noite, espiou o filme que passava e foi dormir. Aquele coração apertando.

quinta-feira, 29 de março de 2007

E AGORA? COLUNA GUIA DA SEMANA


COLUNA GUIA DA SEMANA QUE ENTRA NO DIA 13 DE ABRIL - CANAL MULHER



"S.A., Colega minha, italiana, 29 anos, solteira, saudosa e chateada desabafa o que viveu quando terminou com o namorado. Quando li, estranhei. Não foi raiva, não foi alívio e nem tristeza. Só confusão e silêncio:

Três anos apagados com ‘não sei se isso vai dar certo’ e a porta fechando. Fico do lado de fora..."

quinta-feira, 8 de março de 2007

DECEPÇÃO 2 - BIQUINI


...foi solicitado que Débora usasse um biquíni no próximo desfile. Ela estava acostumada a desfilar de vestidinhos de princesas bem bonitos e bufantes. O preferido da menina era o azul claro, porque Diego, o vizinho, dez anos mais velho, diante de quem Débora corava, elogiara os olhos dela um dia. “Se ele gosta dos meus olhos e meus olhos são azuis, ele deve gostar de azul”. A mãe detestou a idéia do biquíni. Conversou com o marido, que também achou um absurdo e, pela primeira vez, se meteu na carreira da filha.
No dia seguinte Débora estava fora de todos os concursos de miss para sempre, ou até completar os seus dezoito anos. De tão feliz, a garotinha foi fazer um desenho num papel sulfite “emprestado” do escritório do pai. Quando a mãe viu a obra da filha, não entendeu o que significava um biquíni azul ao lado de Débora de vestido bufante, da mesma cor, mas mesmo assim decidiu pendurá-lo na geladeira. Débora fiou feliz. O biquíni salvara a sua vida. Se era um biquíni bom, devia ser azul, da cor de seus olhos. Azul da cor de que Diego gostava.
Ela, agora, acordava mais tarde, às oito horas da manhã. Deixou de sentir aquele sono matinal que a fazia dormir no banheiro. Era pra onde sempre ia quando queria fugir dos seus medos. Que lugar mais esquisito para alguém gostar de estar! Débora gostava mesmo assim. Além do chão geladinho apreciava sua imagem naquele espelho, de alguma forma a luz que entrava pela minúscula janela a deixava mais bonita. Os outros espelhos não eram tão generosos. A mãe dizia que ela era a menina mais bonita do colégio. Ela achava que a mãe a via do mesmo jeito como, naquele momento, ela se via no espelho do banheiro.
Desde aquele dia Débora nunca mais colocou um biquíni. Nem quando completou quinze anos e foi passar o final-de-semana no Guarujá com Renatinha, a melhor amiga. O traje lhe causava repulsa, vergonha. Renatinha achava bobeira e imitava a mãe, usava fio-dental rosa choque. Débora ficava de maiô azul e camiseta branca por cima. Na hora de entrar no mar, chamava mais atenção do que pensava que chamaria usando um biquíni “depravado”. Débora entrava no mar sem tirar a camiseta e os meninos que estavam por perto riam e gritavam “Gata Molhada”. Ela fingia que não ligava. Fingia que Diego não estava dando risada, ali, junto com os garotos. Fingia que ele também não a achava gorda. Fingia que a mãe nunca lhe insistira que usasse biquíni, depois de sua festa de debutantes. Fingia querer a festa mais do que ir para a Disney. Como ela contaria aos pais que não realizaria o sonho deles?
O desenho ficou pendurado na geladeira por uma semana. Débora criava um mais bonito cheio de flores. A mãe gostava de rosas e orquídeas. Um dia ganhou um dinheirinho do pai e gastou metade num buquê para a mãe. Assim como o desenho na geladeira, as flores só duraram sete dias. Débora achava que um buquê durava esse tempo. O desenho estava ficando pronto e ela poderia pendurá-lo na geladeira para sempre. Nunca mais as flores que daria a sua mãe morreriam. A mãe nunca comentou a “arte”. No dia seguinte, ele já estava amassado no lixo. A faxineira Glória o achou caído no chão e resolveu reciclar. Jogou com o saquinho do pão e os panfletos repetidos de pizzaria. Débora engoliu o choro.
Ficava triste com muita facilidade. A mãe a achava sensível demais e se irritava facilmente quando a menina abria o berrero. Aprendeu a engolir o choro sem querer engolir o choro.
Quando mudaram de casa, Débora perguntou ao pai se poderia brincar pela última vez. O pai sorriu e concordou. O que ele não sabia é que ela queria dar estrelas no quarto vazio. Pela primeira vez ela tinha espaço! Quando o pai foi buscá-la, para finalmente conhecer a nova casa, o novo quarto...

segunda-feira, 5 de março de 2007

DECEPÇÃO 1 - PEQUENA MISS SUNSHINE

Uma personalidade fraca levou Débora a esses concursos ridículos de beleza. Pobre criança! Nasceu na época da explosão da Rainha dos Baixinhos e tivera a “sorte” de ser loira dos olhos azuis. A mãe não perderia a oportunidade de colocá-la diante da apreciação de jurados! Ela era realmente bonitinha. Tinha o nariz arrebitado e o sorriso da Olívia Newton-John. O que ambas não sabiam é que, anos mais tarde, Débora não atingiria 1,70m e seu vício em chocolate lhe daria o peso certo para procurar por endocrinologistas e psicólogos.Enquanto, nos bastidores, as mães disputavam no bate-boca, qual era a filha mais bonita, a mais talentosa, a mais bem pretendida, a mais estudiosa, a mais blá blá blá, as garotas brincavam de imitar as chacretes. Já achavam paquitas “coisa de criança”. Débora se trancava no banheiro, pois tinha vergonha de falar que gostava das discípulas Xuxa. Lá ela deitava no chão gelado com uma das bochechas colada no piso. Pensava que não gostava daquela lugar e daquelas pessoas. A parte mais chata era fazer maquiagem. Odiava quando lhe diziam para não piscar os olhos e assim passavam uma tinta preta nos seus cílios. Ela nem sabia que piscava os olhos, mas nessa hora sentia-os bem secos, bem secos e depois, finalmente, molhados. Era quando levava uma baita bronca. Sempre que a mãe lhe flagrava deitada no banheiro, começava a gritar por socorro, achando que algo acontecera. Débora gostava disso, ela ficava quieta e fingia que estava dormindo. Era o único momento que sua mãe lhe dava atenção sem pedir que passasse batom e sorrisse. Ela achava chato sorrir sem vontade. Como não contrariava a mãe, abria a boca de um jeito amarelo e sem-graça. A vida inteira acreditou que não vencia os concursos porque não sorria muito. Aprendeu de pequena que simpatia, beleza e espontaneidade agradavam as pessoas. Ela não era espontânea. Vivia ensaiando as coisas que gostaria de dizer. Não conseguia falar de sopetão. Trancava a porta do quarto e ligava o rádio-relógio bem alto para que ninguém pudesse ouvir suas brigas, suas declarações de amor e seu carinho pela professora de que mais gostava. Um dia, foi flagrada pela mãe, que deu risada e achou tudo muito bobo. O que Débora sentiu depois disso não foi bom. Ela ensaiava para agradar a mãe.Por que ela não contava que preferia freqüentar aulas de desenho a desfilar para um monte de babonas. Ela nunca ganharia um desfile de miss! Seu pai não era doutor, sua mãe não era presidente do Lions e Débora não era de prometer beijos a quem votasse nela. Pensava isso, pois um dia ouvira a mãe chorando ao telefone, confidenciando esses pensamentos à tia. Bonita ela era, claro. Como poderia ser mentira. Uma mãe não mente.A coragem para desistir de tudo, mesmo que fosse decepcionar a mãe, surgiu quando...

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

INQUIETA

Ansiedade de Edvard Munch

É essa ansiedade que me toma todo começo de ano.
Parece que estou atrasada o tempo inteiro e isso me deixa imóvel.
Fico planejando. Passo horas, madrugadas com café traçando o meu futuro brilhante.
Quando chega dezembro, não fiz metade. O resto das realizações é devido ao meu desvio de personalidade. Essa volubilidade.
Mas comecei bem. Não estou agitando sozinha.
Será que desta vez vai, ou melhor, vou?

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...