terça-feira, 27 de maio de 2008

NOVE DA MANHÃ


O trânsito de São Paulo. O ar empedrado de São Paulo. As buzinas de São Paulo que insistem no coro: Bi Bi, Fom Fom, Gostosa. E a impaciência que assinaria as minhas ofensas aos ouvidos do meu chefe e o meu pedido de demissão.
O carro da polícia de São Paulo posando valente em duas das três faixas de uma avenida, porque, talvez, algum ladrão, necessitado, pai de família, cheirador, desesperado, inexperiente, tenha sido surpreendido.
A insignificância de um semáforo verde em São Paulo. A chuva caindo nas poças de São Paulo. Os velhos e suas bengalas atravessando as faixas de pedestres de São Paulo. E o início da minha reunião com quarenta e cinco minutos de atraso do horário programado. Sem café, porque é mais importante ensaiar uma desculpa.
Uma hora depois, cinco ligações do escritório depois, três blocos de músicas depois - uma delas repetida quatro vezes - dois blocos de notícias depois e dez metros depois, percebo mais que o carro da polícia: um resgate, curiosos e verbos soltos no ar, como horas atrás, um corpo.
O corpo de um cretino atrapalha o trânsito de São Paulo.
(texto inspirado em “Construção” de Chico Buarque)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

CONTAMINA-ME O SONHO DE MINHA MÃE


Enfim conheci a letra B que, prometeu a casca de laranja rompida depois de nove giros velozes, vai voltar para casa com um conto doce nas mãos só para me agradar, dizendo que eu não preciso emagrecer, porque sou bonita assim, com cinco quilinhos a mais.

Que tome nota disso tudo a letra G, que encasquetava comigo! Não a culpo. Como não associar destino ao desenho de veias no peito do pé esquerdo?

quinta-feira, 8 de maio de 2008

SEM SEXO




(texto lido no sarau da AIC em 07 de maio)

Mal a porta bate, pode sentir o cheiro de rosas no quarto e o toque bruto de Inocêncio nas suas coxas. Gosta dos calos das mãos masculinas e o prazer que deixam marcado na pele. Tem o hábito de contar na última folha do talão de cheques os dias em que está sem ver um homem nu: duzentos e cinqüenta e oito, graças ao desastre de carro que matou o marido. Tem quatro horas para relembrar os seus melhores ângulos e exibi-los ao espelho do teto e a Inocêncio. Separou na noite anterior o melhor sutiã, meia-taça, e a menor calcinha.

Inocêncio bebe o vinho tinto seco indicado no menu. Ela comemora a temperatura ambiente: vinte graus. Ideal para simular excitação. Esperar que o álcool transforme o colega de viatura em galã é perder tempo, pois já sente a intimidade latejar. Romântica, retardaria o momento de despir a lingerie, mas a precipitação desabotoa o meia-taça, que cai no chão em câmera lenta e ela se arrepia cheia de expectativas. Revelam-se aos olhos do policial seios grandes. Inocêncio, que nunca esteve diante de tal abundância e tanta iniciativa, recua (inseguro?). Ela deixa a calcinha escorrer pelas pernas grossas até encontrar o carpete, encardido de outros prazeres. Inocêncio reprime a manisfestação precoce do seu desejo. Ela se atira aos lençóis de cetim salmão e o traz consigo, ainda vestido. Com a confiança recuperada, ele aborta as preliminares, arranca o uniforme e se concentra na (jura!) satisfação carnal da amante.

Deveria pelar o aproximar de seus corpos. Deveria haver suor tatuando nucas e abdômens. Mal dançam os quadris nas ondas do colchão de água. Mal encostam-se as bocas urgentes de beijos agressivos. Ele grita, enquanto o tédio dela olha para cima, pensando em marcar o reflexo dos cabelos para sábado.

- O ar condicionado está ligado?

Inocêncio, antes empenhado em gemidos primatas, interrompe as fracas reboladas das nádegas peludas. Ao perceber que o homem poderia desabar em choro, frustrações e posteriores broxadas, ela unha a cintura dele e refaz:

- Não pare agora!

O entusiasmo dá continuidade aos movimentos monótonos, desta vez, mais mecânicos, de Inocêncio. E ela pensa:

- Só falta querer dividir a conta!


quinta-feira, 1 de maio de 2008

DESTA VEZ, O FIM

(Texto escrito para o blog da AIC)

Desta vez, terminávamos. Do flagra no bar até seu apartamento, vivemos ofensas na calçada, lágrimas e o empurrão que me atirou de encontro ao muro. Sentados no sofá velho, partiu de mim o pedido. No mesmo sofá em que trepamos quatro vezes na nossa primeira noite. No mesmo sofá em que, talvez um dia, planejaríamos eternidade e casa própria.

Você, mudo, me encarava, vazio.

Abriu a boca para dizer um nevoeiro de palavras: amor, prisão, desejo, mulheres, homens, livre. Reprimi a vontade da minha dor: apagar você com a ponta da tesoura na garganta.

Eu lhe deixava, quando você enchia um copo de água com açúcar para os meus nervos, com a promessa de nunca mais ceder ao charme que existe nos seus telefonemas com flores, consertando, assim, os impulsos de uma semana passada. Destratada, à porta do meu carro e aos prantos, menstruava-me sempre a cena do bar: você, desejo, homens, livre.

Quando a chaleira apitou, minha alegria foi perceber que, desta vez, pela primeira, eu fantasiava o nosso fim.

PASSAGEM DE SOM

Uma cabeça baixa

covarde

 

Minha cegueira

fingida

 

Acordes costuram

um encontro

imprevisto

 

Passos dissonantes

se encaram

 

Mãos refugiam-se

em sax e cigarro

 

Sapatos e notas

enterram no asfalto

o adeus tardio

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